O Castro de Baiões
O Castro de Baiões terá servido
de atalaia ou castelo, na Alta Idade Média?
Sua provável relação com o
refúgio de Bermudo Ordonhes na Terra de Lafões
Resumo
O castro da Senhora da Guia, em
Baiões, é uma das estações arqueológicas da Idade do Bronze mais importantes,
em território português. Na alta Idade Média ter-se-á refugiado na sua
proximidade o príncipe asturiano Bermudo Ordonhes, na sequência da revolta
contra o seu irmão, o rei Afonso Magno.
O contexto histórico, conjugado
com alguns dados arqueológicos e a análise do território, à época, fazem crer
que o castro da Senhora da Guia tenha sido reutilizado com atalaia ou castelo,
nos sécs. IX-X, senão já anteriormente.
Palavras chave:
Senhora da Guia, Baiões, Viseu,
Terra de Lafões, Bermudo Ordonhes, Afonso Magno, Senhorialização, Pré-românico.
No princípio do séc. XVII, Frei
Agostinho de Santa Maria, no Santuário Mariano, refere-se ao monte da Senhora
da Guia (Fig. 1), na freguesia de Baiões - S. Pedro do Sul, nos seguintes
termos: “No tempo em que os Mouros presistiam por aquellas terras, he tradição
constante, que havia naquelle monte huma fortaleza, ou atalaya, que era o seu
receptaculo, & a ladroeyra de donde sahião a roubar, & a infestar os
Cristãos”.
Fig.1 – Vista a partir da encosta
norte do monte de Nossa Senhora do Castelo (Vouzela):
A – Castro da Senhora da Guia,
Baiões; B – Monte das Massarocas, Bordonhos; C – Caldas de S. Pedro do Sul. Em
último plano vê-se a Serra da Arada.
Estes, na sequência das
dificuldades sofridas, costumavam invocar o apoio de Nossa Senhora e “lhe
prometterão, & fizerão voto de lhe edificar naquele mesmo monte, & fortaleza
ou atalaya, huma Ermida, &… a Senhora ouvindo as suas rogativas, os guiàra &
favorecèra, de sorte, que totalmente destruirão os Mouros”. E em acção de
graças e cumprimento do seu voto, depois de pacificada a sua terra, os Cristãos
“lhe levantarão aquella Casa…; & porque a Senhora os guiou, & lhes deo
vencimento contra seus inimigos, lhe impuserão o titulo de Guia” 1.
A mesma tradição, de que este
castro “fora antigamente receptaculo de Mouros”, é relatada pelo pároco de
Baiões, na Memória Paroquial de 1758, acrescentando que “ajuda a esta
credulidade ver-se ainda na raiz do oiteiro vestígios de muro, couza mui tosca
e antiga, e outro mais junto à hermida… mas em cima não há signal algum de castello
ou couza similhante” 2. Alguns anos antes, no Inquérito Paroquial efectuado entre
1747-1751, mantinha-se a afirmação que ali “houvera huma atalaya dos Mouros, e
a provão com as ruínas de hum muro que ainda hoje se vem e esta persuasão os
faz entender que os Mouros deixarião naquelle sitio algum thesouro escondido,
por cuja causa são muitos os que ali vão cavar junto dos penedos; mas sem
effeito” 3. É ainda provável que, por esta época, tenha havido movimento de
terras no cabeço do morro, dado que a Irmandade de Nossa Senhora da Guia viu os
seus estatutos aprovados em 17594, sendo de admitir que a Ermida do Monte do
Castro – como é aí referida – e respectiva envolvência tenham sofrido algum
melhoramento. O interesse dos arqueólogos por este povoado acentuou-se em 1947,
após o aparecimento de dois torques e um bracelete de ouro maciço, na sequência
de umas terraplanagens mandadas efectuar pela Junta da Freguesia, em redor do
santuário 5.
Em 1971, o castro de Baiões
voltou a ser notícia com a descoberta ocasional de alguns machados de talão,
típicos da Idade do Bronze durante o alargamento de caminhos. Esta nova
revelação terá estimulado Monsenhor Celso Tavares de Silva, dois anos depois, a
iniciar escavações no local – onde volta em 1977 – começando-se então a revelar
estruturas do primitivo povoado. A riqueza dos achados veio também a suscitar interesse
por parte de Philine Kalb 6, que, em vários estudos, deu destaque internacional
ao castro de Baiões. É de salientar a análise de C-14, que então promoveu, a
partir de um fragmento de madeira descoberto no interior do alvado de uma ponta
de lança. Este forneceu a datação de cerca 700 a. C., com uma margem de erro
de, mais ou menos, 130 anos. Confirmava-se, assim, a cronologia sugerida por
comparação.
1 SANTA MARIA, Agostinho de, Frei
– Santuário Mariano e historia das imagens milagrosas de Nossa Senhora, e das
milagrosamente aparecidas, em graça dos pregadores e dos devotos da mesma
Senhora. 2ª ed.. S. l: Alcalá, 2006-2008, T. V, L. II, p. 260-262 e 289-291
(edição facsímile da obra editada em 1716).
2 CAPELA, José Viriato; MATOS, Henrique
– As freguesias do Distrito de Viseu nas Memórias Paroquiais de 1758: Memórias,
História e Património. Braga: José Viriato Capela, 2010, p. 494.
3 Idem, p. 1018
4 ALVES, Alexandre – Novas
achegas para a história da antiga Diocese de Viseu. Beira Alta. 30:1. Viseu (1971)
143-144.
5 Um outro torques de ouro viria
a aparecer, em 1971, junto ao cemitério da vizinha freguesia de Serrazes.
6 Investigadora do Instituto
Arqueológico Alemão, a cujas investigações se associou posteriormente Martin Höck.
tipológica de alguns achados
anteriores e que, segundo se pensava, apontariam para o enquadramento deste
povoado na cultura do chamado Bronze Atlântico.
O castro de Baiões reservaria
ainda uma outra surpresa, em 1982, aquando da abertura de um poço artesiano e
respectiva vala para encanamento da água. Na ocasião, encontrou-se um valioso
depósito de fundidor, do final da Idade do Bronze, ao qual dedicou especial
atenção o homenageado, Prof. Doutor Armando Coelho Ferreira da Silva,
coadjuvado então por Celso Tavares da Silva e António Baptista Lopes. Além da
descoberta de vários moldes e de peças sem sinais de uso e com rebarbas, há que
salientar a grande variedade tipológica representada. Entre a cerca de meia
centena de objectos exumados são de referir utensílios de uso doméstico
(machados, foicinhas e taças), armas (pontas de lança e punhal), elementos de
adorno (braceletes variados e argolas) e objectos considerados de culto (carros
votivos, peças tubulares, uma furcula, uma ponteira, etc.). A transcendência
desta descoberta levou a uma intervenção de emergência, por parte dos citados
arqueólogos, a qual permitiu identificar o sítio do depósito e contextualizar
os achados (Fig. 2).
Fig. 2 – Plataforma superior do
monte da Senhora da Guia,
com a implantação dos locais de
escavação arqueológica.
Desenho de Philine Kalb.
O interesse deste conjunto, aliado à reconhecida
importância das descobertas precedentes, levariam estes mesmos investigadores a
considerar que o castro de Baiões “ocupa já um lugar especial entre as estações
castrejas do Noroeste peninsular” 7.
A própria cerâmica de Baiões
evidencia características muito específicas, as quais têm chamado a atenção dos
estudiosos e permitido conhecer melhor a dinâmica da produção regional,
integrando-a em contextos mais alargados, dentro do período em questão. Um dos
autores da monografia sobre o depósito de fundidor, António Baptista Lopes,
acabaria mais tarde por se dedicar a um estudo de síntese sobre as cerâmicas
deste castro, em tese para a obtenção do grau de Mestre, na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto.
A bibliografia sobre o Castro da
Senhora da Guia é hoje já bastante extensa e, em grande medida, de conteúdos
muito especializados. 8
7 SILVA, Armando Coelho Ferreira
da; SILVA, Celso Tavares da; LOPES, António Baptista – Depósito de fundidor do
final da Idade do Bronze do Castro da Senhora da Guia (Baiões, S. Pedro do Sul,
Viseu).
Lucerna: Homenagem a D. Domingos
de Pinho Brandão. Porto (1984) 73-109.
8 Apresentamos aqui a lista dos
trabalhos monográficos mais relevantes:
ARMBRUSTER, B. – A metalurgia da
Idade do Bronze Final Atlântico do castro de Nossa Senhora da Guia, de Baiões
(S. Pedro do Sul, Viseu). Estudos Pré-Históricos. 10-11. Viseu (2002-2003)
145-155 KALB, Philine – Uma data de C14 para o Bronze Atlântico. Arqueólogo
Português. Série III: 7-9. Lisboa (1974-77) 141-144.
Id. – Senhora da Guia, Baiões. Die Ausgrabung 1977 auf einer hensiedlung der atlantischer Bronzezeit in
Portugal. Madrider
Mitteilungen. 19. Madrid (1978) 112-138.
Id. – Contribución para el
estúdio del Bronce atlântico: Excavaciones en el castro “Senhora da Guia” de
Baiões (Concelho de São Pedro do Sul). In Congreso Nacional de Arqueologia, 15º
(Lugo, 1977) – Actas. Zaragoza: 1979, p. 581-591.
Id. – O Bronze atlântico em
Portugal. Revista de Guimarães. 90. Guimarães (1980) 113-120.
Id. – As xorcas de ouro do Castro
Senhora da Guia, Baiões (Concelho de S. Pedro do Sul, Portugal). O Arqueólogo
Português. Série IV: 8-10. Lisboa (1990-1992) 259-276 [versão portuguesa do
artigo “Die Goldring vom Castro Senhora da Guia, Baiões”, em Internationale Archäologie. 1. Berlin (1991) 185-200].
Id. – O povoado da Nossa Senhora
da Guia, Baiões; O tesouro de Baiões. In A Idade do Bronze em Portugal:
Discursos do poder. Lisboa: Museu Nacional de arqueologia, 1995, p. 68 e 101.
Todavia, ela diz respeito
sobretudo ao espólio exumado, havendo poucos
elementos publicados sobre as
estruturas habitacionais e o sistema defensivo do castro. Também faltam dados
seguros do ponto de vista estratigráfico, ausência justificada pela dificuldade
de interpretação dos sedimentos – de consistência e coloração bastante homogéneas
– pela pouca altura dos mesmos e pelo aparente revolvimento dos solos. No
entanto, Philine Kalb chegou a defender uma ocupação relativamente concentrada no
tempo, dada a coerência cronológica que encontrava no conjunto do espólio. Este
pressuposto não se verificou, mais tarde, embora seja certo que o período
nuclear de ocupação do castro é anterior à Idade do Ferro, tendo depois o
povoado sofrido um prolongado abandono.
Id.; HÖCK, Martin – Cerâmica da
Sra. da Guia, Baiões e peças comparáveis do Sul de Portugal na exposição
“Cerâmica de Alpiarça”. Suplemento ao catálogo. In Cerâmica de Alpiarça, Viseu,
1985, 3-4.
LOPES, António Baptista – A
cerâmica do castro da Senhora da Guia (Baiões): Tecnologia e morfotipologia. Dissertação
de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto,
1993.
MEDEROS MARTIN, Alfredo – Metal
para los dioses. La sequencia del grupo de Baiões durante el Bronce Final II y
el comercio chipriota de hierro hacia Portugal (1200-1050 a. C.). In Estudios
de Prehistoria y Arqueologia en Homenaje a Pilar Acosta Martínez. Sevilla,
2009, p. 279-304.
PEDRO, Yvone – O castro da
Senhora da Guia (S. Pedro do Sul, Viseu). In Por terras de Viriato. Arqueologia
da região de Viseu. Lisboa: Governo Civil do Distrito de Viseu; Museu Nacional
de Arqueologia, 2000, p. 142-135.
SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos – O
grupo Baiões / Santa Luzia: contribuições para uma tipologia da olaria.
Trabalhos em Arqueologia da EAM. 1. Lisboa: Colibri (1993) 93-123.
SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos –
Between myth and reality: the foundry área of Senhora da Guia de Baiões and
Baiões/Santa Luzia metallurgy. Trabalhos de Arqueologia da EAM. 6. Lisboa:
Colibri (2000)
61-77
SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos –
Produção, ostentação e redistribuição: estrutura social e economia política no
grupo Baiões/Santa Luzia.
SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos – “Um
mundo entre mundos”. O grupo Baiões / Santa Luzia, sociedade, metalurgia e
relações inter-regionais. Iberografias. 6. Guarda: Centro de Estudos Ibéricos
(2010)
13-26.
SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos et alii – Metallurgy and society in “Baiões/Santa
Luzia” group: results of the MetaBronze project. In Povoamento e exploração dos recursos
mineiros na Europa atlântica occidental. Braga: CITCEM; APEQ, 2011, p. 405-420.
SCHATTNER, Thomas G. – Sobre los
carros com copa de Baiões. Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la
Universidad Autónoma de Madrid. 37-38. Madrid (2011-2012) 263-295.
SILVA, A. R. P. – Carbonized grains and plant imprints in ceramics from
the castrum of Baiões (Beira Alta, Portugal). Folia Quaternaria. 47. Krakov: 1976 (sep.).
SILVA, Armando Coelho Ferreira
da; SILVA, Celso Tavares; LOPES, António Baptista – Depósito de fundidor do
final da Idade do Bronze do Castro da Senhora da Guia (Baiões, S. Pedro do Sul,
Viseu). Lucerna. Porto: Centro de Estudos Humanísticos, 1984, p. 73-110.
SILVA, Celso Tavares – Cerâmica
típica da Beira Alta. In Jornadas Arqueológicas: Associação dos Arqueólogos
Portugueses, 3ª (Lisboa, 1977) – Actas. Lisboa: A. A. P., 1978, p. 185-196.
Id – O Castro de Baiões (S. Pedro
do Sul). Beira Alta. 38:3. Viseu (1979) 510-531.
VALÉRIO, Pedro – Caracterização
química de produções metalúrgicas do castro da Senhora da Guia de Baiões (Bronze
Final). Lisboa: Faculdade de Ciências da Universidade de L., 2005
VALÉRIO, Pedro et alii –
Caracterização química de produções metalúrgicas do Castro da Senhora da Guia
de Baiões (Bronze Final). Arqueólogo Português. Série IV: 24. Lisboa (2006)
283-319.
Agradecemos a João Inês Vaz a
informação sobre algumas das contribuições bibliográficas mais recentes, sobre
o castro de Baiões.
Além dos estudos dedicados
monograficamente à estação arqueológica de Baiões, muitos outros haveria que
citar, de natureza mais abrangente, mas desviar-nos-íamos dos objectivos do
presente ensaio, que intenta questionar a possível existência de um horizonte
de ocupação alto-medieval, apesar de serem pouco esclarecedores, nesse sentido,
os registos até ao momento identificados e publicados. Entre as obras gerais, não
podemos, porém, deixar de referir a dissertação de doutoramento do homenageado,
sobre a Cultura castreja do noroeste peninsular, onde amiúde se fazem
referências – prolongadas referências – ao castro de Nossa Senhora da Guia 9.
Basicamente, o autor integra a
produção de Baiões naquilo que denomina por Fase I e Fase II, podendo esta última
chegar aos sécs. IV-III a. C. Seguir-se-ia um prolongado hiato de abandono, até
possivelmente à época tardo romana, relativamente à qual surgiram escassos
materiais, embora suficientes para testemunhar um qualquer tipo de reocupação.
Contra o que inicialmente se pensava, vinculando os achados de Baiões
essencialmente ao chamado Bronze Atlântico, os materiais da Senhora da Guia
mostram já “indicadores de um quadro de presenças e relações de maior complexidade”
10. Esta realidade é igualmente salientada por outros autores, que apontam para
a existência, desde cedo, de contactos inseridos num mais vasto horizonte
peninsular, através da Meseta ocidental. Na segunda fase, tais relações
alargam-se a influências de origem mediterrânica, em simultâneo com correntes
post-hallstáticas de origem centro europeia.
A concluir este apontamento
inicial, sobre o castro de Baiões e a arqueologia, merecem salientar-se duas
outras ocorrências que têm chamado a atenção dos investigadores. Por um lado, a
coexistência do fabrico de peças metálicas com o uso de materiais líticos,
circunstância que levou erroneamente, em tempos, a pensar-se que haveria um
período de ocupação ainda mais antigo. Por outro, o aparecimento daquela que
foi, porventura, a primeira presença conhecida de um objecto de ferro em
contextos do Bronze Final, no
território português e, no caso vertente, representada por uma lâmina de punhal
com cabo de bronze.
A Terra de Lafões na alta Idade
Média
Como vimos, já em época
proto-histórica a região de Viseu ocupava um posição privilegiada nas relações
entre o ocidente peninsular e as culturas centro-europeia e mediterrânica. Esta
função estratégica ir-se-á reforçar com o Império romano, nomeadamente através
da ligação da Bética e da capital da Lusitânia com as regiões mineiras do
noroeste. Durante os reinos bárbaros, se bem que várias localidades da Beira
interior tenham conhecido cunhagens de moeda, o palco dos acontecimentos políticos,
em território português, desloca-se sobretudo para o noroeste e para o litoral.
Entretanto, a invasão islâmica
fez emergir uma nova entidade político-cultural, o al-Andalus, cujas
consequências vão ser determinantes para a transformação das Beiras como terra
de fronteira. A região de Viseu vê assim reforçada a sua posição estratégica, mas,
devido precisamente à fluidez dessa fronteira, a sua existência passa a estar
9 SILVA, Armando Coelho Ferreira da – A cultura
castreja no noroeste de Portugal. Paços de Ferreira: Museu Arqueológico da
Citânia de Sanfins, 1986.
10 Idem, p. 118.
recheada de cambiantes,
característicos de um território de passagem e exposto a acções de guerra ou
guerrilha, mas também enquanto zona propícia a contextos de isolamento e à
isenção de soberania estatal. Por outro lado, esta não deixará de aproveitar
dos períodos de coexistência pacífica entre os principais contendores e,
deliberadamente, permanecerá sempre aberta a contactos informais entre
populações vizinhas.
As fontes documentais dão-nos
informação de que os árabes, devido em grande medida à desproporção numérica
relativamente à população local, preferiram, sempre que possível, pactuar com
as populações locais, garantindo-lhes o direito de propriedade e a liberdade de
culto, desde que aceitassem determinadas condições, entre as quais a obediência
e o pagamento de imposto. Houve cidades que tiveram que ser tomadas pela força,
como Sevilha e Beja, mas nas zonas em que a transição foi pacífica, preparam-se
acordos de capitulação que garantiam à população hispânica uma relativa
estabilidade. O pacto mais conhecido é o da região de Tudmir (Múrcia), cujas cláusulas
chegaram até nós. Mas há notícia da existência de outros acordos, como o da cidade
de Lisboa ou os que tiveram lugar nas chamadas “terras altas”, que P. Chalmeta acredita
corresponderem a “toda a zona astur-galaica” 11. O mesmo autor, entre as áreas
geográficas em que houve pactos,
considera toda a faixa ocidental desde o rio Sado às rias galegas. A
cartografia que apresenta, inclui uma larga banda ao longo da costa portuguesa
que, no que corresponde às Beiras, abrange por inteiro a área de Viseu-Lafões.
É de referir que, para o século XI, há a notícia de uma investida muçulmana a partir
de Sevilha, durante a qual, na região de Lafões, foram encontradas populações cristãs
aí estabelecidas desde há longo tempo. Mesmo que se duvide da existência de
gentes da tribo Gassânida, de origem síria, a alusão à permanência de uma forte
comunidade moçárabe é digna de inteiro crédito 12. Um testemunho da concentração,
em Lafões, de um grupo significativo de herdeiros dos subscritores de um
“pacto” – ao tempo da campanha vitoriosa de ‘Abd al- ‘Aziz – pode possivelmente
identificar-se na toponímia local. Tem havido alguma dificuldade em explicar a
presença do onomástico “Sul”, atribuído a duas localidades – a sede concelhia e
a povoação de Sul, um pouco mais a norte – e ao próprio afluente do rio Vouga,
que cruza um vale povoado desde longa data 13. Em nosso entender, é bem
provável que estejamos perante a evocação, na
11 CHALMETA, Pedro – Invasión e
islamización: La sumisión de Hispânia y la formación de al- Andalus. Madrid:
Editorial Mapfre, 1994, p. 215-218.
12 Cyrille Aillet é de opinião que a referência à
algara sobre o presumível grupo cristão, de etnia Gassânida, é uma mistificação
inserida numa gesta literária tendente a valorizar a dinastia abádida de
Sevilha. Cfr. Les Mozarabes. Christianisme, Islamisation et arabisation en Péninsule
Ibérique (IX-XII siécle). Madrid: Casa Velázquez, 2010, p. 300. Na realidade, os Gassânidas
eram cristãos árabes que migraram no séc. III d. C., do actual Yémen para o sul
da Síria. As suas tribos tornaram-se vassalas do Império bizantino,
envolvendose, depois, na guerra deste último contra o Estado persa. O pequeno
reino Gassânida desapareceu em meados do séc. VII, durante a conquista
muçulmana da Síria. Este facto fragiliza a ideia de uma migração de membros da
tribo para a Península – em pleno domínio visigodo – mas não a possibilidade da
invocação mítica de uma derrota do mesmo grupo de cristãos, agora no ocidente
peninsular, perante uma dinastia que reivindicava a origem síria dos seus
antepassados.
13 Jorge Alarcão chegou a levantar a hipótese da
estância balnear de S. Pedro do Sul ter possuído, originalmente, o nome de Aquae
Sulis, à semelhança do que sucedeu em Bath, na Britania romana, em virtude da
designação atribuída a uma divindade ligada à cura com águas termais. Porém,
não apareceu até memória popular, do vocábulo árabe sulh, que significa “pacto”
14.
O mais natural é que a região se
tenha transformado num mosaico social e cultural, onde, a par da população indígena,
convivesse gente de outras etnias, nomeadamente berberes, os quais se haviam
inicialmente estabelecido mais a norte e recuaram para as Beiras, em grande número,
após a rebelião de 741 d. C. Alguns poderão ter mesmo abraçado a religião cristã,
como serão eventualmente os antepassados daquele Cotama Cotamiz que, em 933,
confirma a doação do rei Ramiro II ao mosteiro de Lorvão. Houve também, sem dúvida,
hispano-godos que aderiram ao Islão por influência dos seus novos senhores, por
razões de ordem prática ou por mero oportunismo. Eram os chamados muwalladun ou muladis. Mas a maioria da
população Lafonense pode ter-se mantido fiel à religião dos seus antepassados,
embora não possamos saber, em concreto, como se deu a sua evolução. O mesmo não
se poderá dizer quanto a outros aspectos da vida quotidiana, como a própria
língua, onde os vestígios de uma aculturação intensa estão patentes na toponímia
e nos nomes dos habitantes, registados em documentos da época.
O vale do Vouga foi recuperado
pela monarquia astur-leonesa entre as décadas de 60/70 do séc. IX, na sequência
das presúrias do Porto, Coimbra e Viseu. No entanto, com Almançor (c. 987 d.C.)
a região voltou à posse do califado de Córdova e, pouco depois da morte
daquele, passou a depender da taifa de Badajoz. Ao fim deste segundo período de
domínio muçulmano – que terá durado pouco mais de 70 anos – a região de Lafões
regressou à posse cristã, o mais tardar em 1064 d.C., data da reconquista de Coimbra
por Fernando Magno.
A chegada do clã senhorial
opositor a Afonso Magno
Corria o ano de 866 quando Afonso
III foi coroado rei das Astúrias. Tinha apenas dezoito anos à data da morte de
seu pai, Ordonho I, mas já desde 862 acompanhava este no governo da Galiza, da
qual se intitulava “rei”, embora subordinado à tutela do progenitor, que
reinava em Oviedo. A Galiza foi, desde cedo, um quebra-cabeças para a corte
asturiana, devido à resistência de uma classe senhorial radicada na região e
que sentia ter interesses a defender. A fórmula encontrada pela realeza astur,
com alguma lógica, passava pela nomeação de um governo de proximidade e, em
simultâneo, criava condições para que o príncipe escolhido se fosse preparando
para, mais tarde, assumir por inteiro as responsabilidades da governação do
Reino. Todavia, o princípio da hereditariedade do trono não era regra
consensual numa monarquia que tinha, como referente, o direito visigodo. Assim,
mal tivera tempo de se instalar em Oviedo, hoje qualquer epígrafe que o
confirmasse e, além disso, o étimo “Sulis” choca com a forma como o nome sistematicamente
aparece referido na documentação medieval: “Sur”.
Sobre a hipótese da ascendência
romana do topónimo, vd: ALARCÃO, Jorge – Geografia política e religipsa da
civitas de Viseu. In Actas do I Colóquio Arqueológico de Viseu. Viseu: Governo
Civil do Distrito de V., 1989, p. 307; e VAZ, João L. Inês – – A Civitas de
Viseu: Espaço e sociedade. Coimbra: Comissão de Coordenação da Região Centro,
1993, vol. 1, p. 200-202.
14 No Livro Petro da Sé de Coimbra, entre 1092 e
1108, aparecem vinte e nove documentos com a alusão a “ribulo sur”, “aquas ad
Sur”, etc. E a villa de São Pedro (onde no século XI aparece já o mosteiro, mas
apenas designado pelo orago da respectiva igreja, sem referência ao topónimo)
surge em 1128 com o designativo actual: “villa Sancti Petri de Sur”.
já Afonso se via a braços com uma
forte rebelião liderada pelo conde de Lugo, Fruela Bermudes, que avançou sobre
a capital e se auto proclamou rei, obrigando o herdeiro do trono a refugiar-se
no condado de Castela. Aqui, ele recebe pronto auxílio por parte do conde
Rodrigo, que, à frente dos seus homens, se dirigiu a Oviedo, prendeu o chefe da
revolta e voltou a colocar o Afonso no trono. O reinado deste monarca, que as
crónicas – por si patrocinadas – apelidaram de Magno, durou quase 45 anos. Contudo,
foi fértil em rebeliões, a maioria delas partindo, ora de nobres radicados na
Galiza oude habitantes da Vascónia, ora dos próprios familiares mais chegados.
Não cabe aqui descrevê-las em
pormenor, mas gostaríamos de salientar a do conde Hermenegildo Peres, irmão do
presor de Portucale, durante a encadeada crise de 885-886, crise esta que
contribuiu para reforçar o poder de uma outra linhagem, presumível concorrente,
a do conde Hermenegildo Guterres. Por essa altura, o antigo presor de Coimbra,
como reconhecimento pelo seu dedicado empenho na defesa do rei Magno, viu-se
recompensado por este com a nomeação para o cargo de mordomo da Corte.
Já antes, talvez por volta de
880, os próprios irmãos do monarca tinham maquinado a morte de Afonso. Narra a
Crónica de Sampiro que Fruela, Bermudo, Nuno e Odoario se rebelaram contra o
rei Magno, que os veio a derrotar e, como castigo, lhes aplicou uma das penas
mais contundentes, à época, que era a desorbitação dos olhos. É provável que
tenha havido uma posterior reconciliação, pelo menos com parte dos irmãos, e
não é seguro que a pena da cegueira tenha sido aplicada a todos eles. O mais insubmisso
parece ter sido Bermudo, que, anos mais tarde, voltaria a revoltar-se. Sendo
obrigado a fugir de Oviedo, refugiou-se em Astorga, onde, ainda segundo
Sampiro, impôs a sua “tirania” durante sete anos. O príncipe Bermudo
encontrava-se cego, mas estaria
acompanhado por um conjunto de
fiéis servidores e contava com apoios na vizinha terra de Bierzo, a que se
juntaram – conforme é expressamente referido – aliados muçulmanos. Por fim,
Afonso Magno consegue dar-lhes luta em campo aberto, nas proximidades de
Grajal, derrotando as hostes de Bermudo, que se vê obrigado a fugir para “terra
de mouros”. Na sequência desta sua vitória, Afonso III castigou duramente as
populações de Astorga e Ventosa.
A sintética notícia transmitida
por Sampiro – clérigo nascido em meados do séc. X e próximo do cenário dos
acontecimentos que relata – foi aceite pela maioria dos historiadores, mas veio
a ser contestada por uns quantos, dos quais se destaca Armando Cotarelo
Valledor, o principal biógrafo do rei Afonso Magno15. Em defesa da veracidade do
relato do cronista bergidense salientou-se A. Quintana Prieto 16, que desmonta
uma série de incongruências de Cotarelo17. Além disso, circunscreveu a rebelião
de Astorga entre 891-898, aproximadamente, e acrescentou novos dados, como o
comportamento do bispo Ranulfo, o possível motivo do atraso da sagração da nova
basílica de Santiago
15 Historia crítica y documentada de la vida y
acciones de Alfonso III el Magno, último rey de Astúrias. Madrid: Librería
General de Victoriano Suárez, 1933.
16 La “Tirania” de Bermudo, el Ciego, en Astorga.
Leon, 1967 (sep. de “Archivos Leoneses”, nº 41)
17 A obra de Cotarelo, apesar da
sua utilidade, está eivada de imprecisões quando se refere a membros de linhagens
astur-leonesas e a certos acontecimentos ligados ao território português, como
na versão que dá das presúrias do Porto e Coimbra. É de recordar que esta
biografia de Afonso Magno precede, em cerca de quinze anos, o estudo
“refundador” de Emílio Saez, a propósito dos ascendentes de S. Rosendo.
de Compostela (cuja obra já
estaria terminada em 896) e a identificação dos campos de Grajal e do castro de
Ventosa 18.
Tem sido praticamente consensual
que Bermudo Ordonhes, depois de expulso de Astorga, se refugiou na região de
Lafões, apoiado por um grupo de nobres que aí se radicaram, à sombra da família
de Diogo Fernandes e Onega, os pais da célebre condessa Mumadona Dias. Na
verdade, dois documentos do século X, um com a participação da própria Onega,
já viúva, e outro em nome da filha Múnia, evocam o saudoso príncipe Bermudo nos
seguintes termos: “domnissimi nostri domini Veremudi diue memorie” ou “pro
memorie dominissimi mei domni ueremudi diue memorie” 19.
A propósito do príncipe Bermudo,
como tivemos oportunidade de acentuar em estudo anterior, “não terá sido por
acaso que escolheu a zona de Viseu, já que a ela estaria ligado o presor de
Chaves, Odoário (comes castelle et viseo)20, que se pensa ser igualmente irmão
do rei e com ele entrou em conflito. Afonso Magno teve problemas também com este
outro irmão, pois os seus bens ser-lhe-ão confiscados. Tudo isto se conjuga com
a presença, igualmente nesta região, de outros presumíveis dissidentes, os
futuros genros de Diogo Fernandes e Onega, que pertenciam às linhagens que, em
nosso entender, terão sido espoliadas do comando dos territoria de Tude et
Portucale, por Hermenegildo Guterres. Alvito Nunes era neto de Vímara Peres e,
tanto Hermenegildo Gonçalves,
como Rodrigo Tedones, são
descendentes de Afonso Betote, o presor de Tui. O marido de Mumadona Dias era
ainda, pelo lado feminino, bisneto do rebelde Hermenegildo Peres, irmão de
Vímara, cuja filha casara com Afonso Betote. Os membros deste grupo, até à
deposição de Afonso Magno (910), terão funcionado com uma certa liberdade, enquanto
verdadeiros chefes de fronteira, numa zona onde a realeza e o emirato não possuíam
grande capacidade para se impor” 21.
A escolha do lugar: entre
Moçâmedes e Bordonhos, na zona das Caldas de Lafões
Não se sabe desde quando Diogo
Fernandes e Onega se estabeleceram na região de Lafões. Terão estado com
Bermudo em Astorga, fazendo parte do séquito que o acompanhou na fuga para
“terra de mouros”? Não é impossível que se tenham instalado antes mesmo da
derrota de Bermudo em Grajal (c. 898) ou, pelo menos, que já nessa altura
mantivessem contactos com membros da nobreza que aí se veio a acoitar,
descontentes com o Rei e ambiciosos por alcançar novos domínios 22. Mas não
18 Segundo este autor, a refrega ter-se-ia dado
em Grajal de la Ribera (c. La Antígua) e não em Grajal de Campos. O destino da
fortificação Ventosa, que foi cabeça da terra de Bierzo, voltou a ser tratado
por José A. Balboa de Paz, in Castro de Ventosa en la Edad Media. “Actas de las
Jornadas sobre Castro Ventosa”. Cacabelos: Patronato del Património Cultural de
C., 2003, p.131-154.
19 DC 34 e 107 (passaremos a
designar sempre desta forma os documentos publicados nos Portugalia e Monumenta
Histórica Diplomata et Chartae).
20 Esta “Castela” diz respeito a uma região da
Galiza ligada ao conde Odoário, que foi patrono do mosteiro de Santa Comba de
Bande.
21 A dinâmica cultural em “Portucale” e
“Colimbrie” nos séculos VIII-XI. Texto introdutório às Actas do 1º Encontro de
Cerâmica Medieval do Norte e Centro de Portugal (Conimbriga, 1912), no prelo.
22 Neste âmbito há também que equacionar a
colonização da Terra de Santa Maria, com ramificações para o vale do Vouga, por
parte do irmão de Diogo, Ero Fernandes, governador de Lugo durante o
há qualquer rasto do seu percurso
antes do final da primeira década de novecentos. Aquilo que se pode dar como
certo é que Diogo Fernandes nunca aparece junto da corte astur-leonesa até 909,
ano em que, precisamente, Afonso III está em decadência e prestes a ser
destronado pelos filhos, com apoio da própria rainha Jimena. Outro dado relativamente
seguro é o de que ele e Onega terão escolhido para residência o paço de
Moçâmedes 23, sobranceiro às Caldas de Lafões, na margem sul do Vouga (Fig. 3).
Fig. 3 – Capela e entrada
da Quinta do Paço de
Moçâmedes
Aí terá sido educado também o
príncipe Ramiro, que foi “rei” em Viseu (926-930) 24, antes de aceder ao trono
de Leon.
O líder natural do clã rebelde
seria Bermudo Ordonhes e tudo leva a crer que escolheu, como lugar de
permanência, outro local nas vizinhanças das referidas termas de Lafões. Em
nosso entender, terá assentado em Bordonhos, actual freguesia do concelho de S.
Pedro do Sul, na margem direita do rio Vouga (figs. 4 e 5).
Fig. 4 – O planalto de
Bordonhos,
visto do adro da igreja:
à direita, está a Casa do Paço.
Fig. 5 – Portão da Casa do
Paço, em Bordonhos.
O documento mais antigo que se
conhece sobre esta localidade data de 1030, aludindo-se aí ao “terminum Iben
Ordonizi”; segue-se outro de 1098, que fala da compra, por parte de João
Gosendes, de uma porção da “uilla quam nuncupant Iban Ordonis suptus montis Fuste
discurrente rivulo Sur” 25.
Esta última carta está transcrita
no Livro Preto da Sé de Coimbra, o qual inclui quinze documentos sobre a
referida villa, que aparece citada com algumas variantes 26. A fórmula mais
repetida é o onomástico de raiz árabe Iben Ordonis. Não nos devemos esquecer
que estamos numa região desde cedo com forte presença de moçárabes, os quais,
com o tempo, viram aumentar a pressão da cultura islâmica. Em linguagem vulgar
na época, os referidos documentos aludem, em árabe, reinado de Ordonho II. Este
magnate parece ter-se mantido numa posição de não hostilidade face a Afonso
Magno e foi constituindo património no promissor território de Entre Douro e
Mondego. Não se sabe, ao certo, o momento em que este processo se inicia. O
matrimónio dos seus filhos, Ilduara e Gondesendo, com descendentes directos de
Hermenegildo Guterres, o presor de Coimbra, pode ser um sinal de que procurava
um equilíbrio diferente ao do seu irmão Diogo, no contexto das relações de
poder no seio da monarquia astur-leonesa. A importante doação da viúva de
Gondesendo Eriz, ao mosteiro de Lorvão, revela que as propriedades de família
se haviam estendido até ao interior da Terra de Viseu. E uma prova indirecta
desta realidade pode ser encontrada também na distribuição da riqueza fundiária
da casa de Marnel, herdeira do património de Egas Eriz “Iala”, outro provável
filho de Ero Fernandes.
Cfr. MATTOSO, José – A nobreza
medieva portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 125-136; e MATTOSO,
José; KRUS, Luís; ANDRADE, Amélia – O Castelo e a Feira. A Terra de Santa Maria
nos
séculos XI a XIII. Lisboa:
Editorial Estampa, 1989, p. 127-132.
23 Como se depreende de um documento
de 928, lavrado na “villa abozamates”, sendo Onega já viúva (DC 34). Junto a
Moçâmedes foi assinalada uma sepultura antropomórfica aberta no saibro e, na
própria
Quinta do Paço, foram descobertos
“pesos de tear e pedras com letras”. Cfr. MARQUES, Jorge Adolfo de Meneses –
Sepulturas escavadas na rocha na região de Viseu. Viseu: Éden Gráfico, 2000, p.
177-178; e IDEM – Carta arqueológica do concelho de Vouzela. Vouzela: Câmara
Municipal, 1999, p. 38.
24 SAEZ, Emílio – Ramiro II, rey de “Portugal” de
926 a 930. Revista Portuguesa de História, 3, Coimbra (1947) 271-290. A
educação de Ramiro foi confiada a Diogo Fernandes e Onega, pelos seus
progenitores, por volta do ano 900, ainda quando o futuro Ordonho II governava
apenas na Galiza, da qual a região de Viseu constituía a marca meridional.~
25 DC 268 e 885.
26 LP 216, 221, 228, 229, 230, 231, 235, 467,
468, 470, 473, 475, 477, 478, 486. Usaremos a sigla LP, para citar os
documentos deste mesmo códice, na sua última edição: Livro Preto: Cartulário da
Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade, 1999.
ao nome do antigo proprietário da
villa, que era o “filho de Ordonho”, ou seja, era alguém cujo pai seria
sobejamente conhecido para servir de identificação a quem viveu naquele local.
Em nosso entender terá sido, precisamente, o príncipe rebelde Bermudo Ordoñez,
filho do rei Ordonho I e patriarca do clã senhorial de Lafões.
Bordonhos dista menos de uma
légua das termas de S. Pedro do Sul. E uma prova complementar da presença deste
príncipe das Astúrias vamos encontrá-la na capela de S. Martinho, junto aos
antigos Banhos romanos (Fig. 6).
Fig. 6 – Capela de São Martinho,
anexa às termas romanas de S. Pedro do Sul.
A primeira pessoa a chamar a atenção para a
origem antiga deste templo foi F. Russel Cortês, que publicou o fragmento de um
ajimez, incluído num dos muros remontados após a ruína parcial do edifício 27.
Tivemos a oportunidade de, mais recentemente, relacionar este fragmento de
ajimez das Caldas de Lafões com uma peça, quase idêntica, existente na
cabeceira da igreja asturiana de S. Salvador de Valdedios (Fig. 7) e que lhe
pode ter servido de modelo 28.
b: comparação do mesmo ajimez com
o fragmento existente na capela de São Martinho.
Arranjo gráfico de Cláudio
Almeida.
Também tivemos o ensejo de
contextualizar este achado, relacionando-o
com outras produções beirãs de
matriz comum 29. A propósito de Valdedios, deve recordar-se que uma
investigação atenta, sobre a arquitectura do templo, revelou que a lápide de
sagração, datada de 893 d. C., é epigraficamente diferente das demais existentes
na igreja e foi colocada à parte, sob um arco exterior. Nada tem a ver com a
série de legendas colocadas nas portas e janelas, para descrever o significado
de cada parte do edifício, de acordo com o respectivo programa original.
Haverá, pois, dois momentos distintos, ideia esta que é também reforçada pela
observação de um certo faseamento arquitectónico e de uma mudança no plano
decorativo. A pintura mural do interior,
nomeadamente, levou a que várias
inscrições tenham sido “cubiertas o
repicadas, por inútiles (o quizás
por molestas?)”. Assim o considera César G. Castro Valdés, que fala ainda de
uma possível damnatio memoria e, decerto como eventual consequência da guerra
fratricida entre os filhos de Ordonho I. Em sua opinião, o mais viável é que
estejamos perante a seguinte sequência: “construcción del edifício a cargo de
un agente desconhecido; consagración en 893, com intervención, verosílmilmente,
de Alfonso III, convocante de 7 obispos, y modificación arquitectónica en la
lateral S. del templo (pórtico y capilla) así como decoración pictórica del
interior” 30.
Também Javier Fernandez Conde
recorda a luta entre Afonso Magno e os irmãos, ao questionar
27 Restos páleo-cristãos nas termas de S. Pedro
do Sul. Viriatis: Boletim do Museu Grão Vasco. 1:1. Viseu (1957) 54-55.
28 REAL, Manuel Luís – A escultura decorativa em
Portugal: o grupo “portucalense”. In Escultura decorativa tardorromana y altomedieval
en la Península Ibérica. Madrid; Mérida: Consejo Superior de Investigaciones Científicas,
2007, p.144-146.
29 IDEM – A arquitectura pré-românica do norte de
Portugal. In Arte e Cultura da Galiza e Norte de Portugal. Vigo; Setúbal: Nova
Galícia; Marina Editores, 2006, p.98 e 107. Sobre a influência asturiana nas
Beiras, vd. tb.: FERNANDES, Paulo Almeida – Eclectismo. Classicismo.
Regionalismo. Os caminhos da arte
cristã no Ocidente peninsular entre Afonso III e al-Mansur. In Muçulmanos e
cristãos entre o Tejo e o Douro (Sécs. VIII a XIII). Palmela: Câmara Municipal
de Palmela; Faculdade de Letras do Porto, 2005, p. 293-310; e IDEM – A igreja
de São Pedro de Lourosa e a sua relação com a arte asturiana. Arqueologia
Medieval. 10. Porto: Edições Afrontamento (2008) 21-40.
30 CASTRO VALDÉS, César Garcia de – Arqueologia
Cristiana de la Alta Edad Media en Astúrias. Oviedo: Real Instituto de Estudios
Asturianos, 1995, p. 129-130.
o sentido do preâmbulo da
epígrafe de sagração. E pergunta: “No poderíamos suponer que el autor del texto
epigráfico de Valdediós está aludiendo a los sentimentos autênticos, vividos
por el soberano, en una de las etapas más cruciales de su reinado? Parece que
existen coincidências histórico-cronológicas que avalan dicha sugerencia” 31.
É de sublinhar que a lápide da
sagração, embora não insira o nome do monarca, refere a larga comitiva de
bispos que participou na cerimónia, o que só se explica num acto patrocinado
pela corte de Oviedo. Por outro lado, ele acontece exactamente durante a
segunda rebelião de Bermudo, cujo património poderia ter sido confiscado há já algum
tempo. E, não menos revelador, verifica-se que estão presentes todos os bispos da
grande Gallaecia, com a única excepção do da diocese de Viseu, o que leva a crer
que esta cidade já então manteria uma postura dissidente, explicando também o
sentido da posterior fuga de Bermudo para esta região.
As Caldas de Lafões ainda hoje
mantêm o edifício termal da época romana (Fig.8), com parte dos seus muros
conservados até ao nível da cobertura.
Fig. 8 –
Trecho das termas romanas de S. Pedro do Sul.
E escavações arqueológicas, realizadas
em dois momentos no século passado, revelaram a respectiva planta e fases de
ocupação 32. A utilização destas termas continuou durante a alta Idade Média e
mesmo depois, a ponto de aí se ter instalado a corte do primeiro rei de
Portugal,
após o ferimento que sofreu no
assalto a Badajoz33. E a responsabilidade de Bermudo Ordonhes pela construção
da igreja de S. Martinho, nos derradeiros anos do séc. IX, parece quase segura.
Hoje é uma pequena capela, distante cerca de vinte metros do pórtico de acesso
às termas, mas, na origem, ela estaria praticamente colada ao edifício romano.
Na baixa Idade Média entrou em ruína e foi-lhe retirada toda a aula basilical que,
eventualmente, possuiria três naves. Só resta a capela-mor, muito transformada pela
reconstrução a que esteve sujeita. A actual parede oeste possui um portal
gótico, seguindo-se um átrio descoberto. Aquela parede, de fabrico
tardo-medieval, encosta ao muro sul do templo, de muito má construção – o que
se compreende, por ser obra efectuada ainda com parcos meios locais e distando
talvez mais de uma década relativamente ao início de S. Pedro de Lourosa – mas
demonstra que a parte inferior da fachada sul ainda conserva o aparelho
primitivo 34.
A escolha de Moçâmedes e de
Bordonhos, por parte desta elite insubmissa, explica-se por razões de segurança
– tanto territorial, como topográfica – mas também pela proximidade da estância
termal. Esta era uma preocupação suplementar, existente
31 FERNANDEZ CONDE, Francisco
Javier – La fundacion de S. Salvador de Valdedios: Fuentes epigráficas. In La
época de Alfonso III y San Salvador de Valdedios. Oviedo: Universidad de O.,
Deparamento de Historia y Artes, Área de Historia Medieval, 1994, p. 222.
32 FRADE, Helena; MOREIRA, José –
A arquitectura das termas romanas de S. Pedro do Sul. S. Pedro do Sul: Câmara
Municipal, 1993. Já anteriormente o local fora objecto de pesquisas
arqueológicas: cfr. OLEIRO, J. M. Bairrão – Termas de S. Pedro do Sul.
Humanitas, Nova Série: 4-5. Coimbra (1955-56) 279.
33 CRUZ, António – A Corte
Portugalense em Alafões. In Tempos e Caminhos: Estudos de História. Porto, 1973,
p. 17-35; SANTOS, Eduardo – As Termas de São Pedro do Sul: achegas para a sua
história. Viseu, 1972 (sep. de “Beira Alta”); OLIVEIRA, A. Nazaré – Termas de
S. Pedro do Sul (Antigas Caldas de Lafões). Viseu: Palimage Editores, 2002. 34
Segundo a tradição, terá sido nesta capela que foi baptizado São Frei Gil de
Vouzela (ou de Santarém).
naquele tempo entre a nobreza e o
alto clero. Mas outros motivos estiveram também presentes. Cingindo-nos ao caso
de Bermudo Ordonhes, é de acentuar que a villa, por ele tomada 35, se
encontrava numa posição estratégica invulgar. Ela situa-se na borda de um
fértil planalto, com localização relativamente discreta, mas próxima de uma via
alternativa de ligação entre Viseu e o litoral nortenho. Trata-se de um vale de
altitude, com perfil ondulante, hoje inserido nas freguesias de Carvalhais e de
Bordonhos (Fig.4).
Ele encaixa-se entre a Serra da Arada (a norte) e a
cordilheira que integra o Monte da Senhora da Guia (a sul), sendo lateralmente
cingido pelos declives correspondentes aos vales dos rios Sul e Landeira. A sua
superfície é cortada por uma densa malha de cursos de água secundários – daí
não ser o terreno inteiramente plano – com destaque para a ribeira de Vilar e
para o curso superior do Varosa. Este último recebe ainda as vertentes das
ribeiras da Regadinha e de Constança. E, já no séc. XI, a documentação ilustra
a excelente capacidade agrícola da zona, com referências tais como: super illo lavrario,
arbures fructuosas uel infructuosas, leira, pascuis, liniolum, uineis, pamares
(sic), perales, figales, castaniales, nugares, ceresales, etc. Por outro lado,
em 1108, é mencionada a herdade de orral, hoje possivelmente o lugar de Eiró,
na freguesia de Bordonhos 36, topónimo que parece derivar de “horreo” ou
celeiro. O povoamento era já muito antigo nesta zona planáltica, como o
testemunham os vizinhos castros da Cárcoda e da Senhora da Guia, além da
necrópole tardo-romana de Germinade 37. A documentação respeitante a esta zona,
anterior ao séc. XII, inclui a invulgar referência a “vici”, quando trata de
definir o âmbito e a antiguidade da propriedade fundiária: por exemplo, em
1098, sobre a uilla Abanatus (Abados) per suis locis et uigos et terminos
antiquos, (DC 875). Na verdade, são múltiplos os lugares deste pequeno
território mencionados já em finais da alta Idade Média. É bem elucidativo o
diploma de 1030, referente ao lugar de Figueirosa, justamente no sopé do castro
da Senhora da Guia (DC 268). Ao descrever a herdade de Fikeirosa ele traça,
como limites, os termos de Aberautis (distinta forma de designar Abados),
Penso, Vilanoba (hoje talvez “Quinta Nova”, em Baiões) e Iben Ordonizi
(Bordonhos). Trata-se de um perímetro facilmente
perceptível na cartografia actual, onde o documento, na sequência dos pontos de
passagem, ainda introduz um outro tópico, logo a seguir ao lugar de Bordonhos,
deste modo: et inde fige se in termino de palacio. À frente, fecha-se o
circuito em Abados, onde tinha começado, não dando pois margem para confusão
deste tal “palacio” com outro lugar – “Paços” – existente bastante mais a norte,
na freguesia de Carvalhais, e que também foi honra de fidalgos no séc. XIII.
No primeiro caso, trata-se
seguramente do paço de Iben Ordonizi, ou seja, com toda a probabilidade, da
residência outrora pertencente ao príncipe Bermudo Ordonhes 38.
Ainda hoje existe aí a Casa do
Paço, um pouco abaixo da igreja de Bordonhos (Fig.35 Contíguo a Bordonhos
existe o lugar de Prendedores, mas temos grande dúvida que o topónimo possa estar
relacionado com as acções de presúria levadas a cabo por esta época.36 Segundo
os responsáveis pela mais recente edição do Livro Preto: LP 223.
37 A respeito desta última, veja-se: GIRÃO, A. de
Amorim – Necrópole romana de Germinade (S. Pedrodo Sul). O Arqueólogo
Português. 26. Lisboa (1924) 249-250.
38 O vale onde está implantado o
paço era conhecido, já no século XII, por Valle Ordonis ou Vaordonios, o que
veio a dar “Bordonhos”.
4). E segundo Pinho Leal, no
tempo de D. Dinis a honra de Bordonhos pertencia a D. Maria de Negrelos, por
herança de seus avós. Um seu descendente, Gonçalo Anes Homem, foi o primeiro
Morgado de Bordonhos. Sucedeu-lhe um irmão e, depois, o filho deste, Heitor
Homem, que casou com D. Isabel de Sousa, razão por que os senhores de Bordonhos
passaram a usar também as armas dos Sousas, as quais se vêm no “soberbo”
mausoléu familiar existente na igreja da freguesia. Teve esta casa ainda representação
dos apelidos Lemos e Alvim 39. E nas Memórias Paroquiais, de 1758, dizse que a
igreja, com orago a S. João Baptista, é de padroado particular, sendo então a abade
apresentado por Fradique Lopes de Souza Lemos, fidalgo de Sua Magestade. A maior
parte da freguesia tinha vínculo ao morgadio dos Sousa Lemos, que era
limitadopor padrões e marcos.
Um pouco abaixo da localidade de
Bordonhos, mas para o lado oposto, em S. Salvador de Serrazes – que fica pegada
às termas e figura já num documento de 1104 (LP 69, repetido em LP 321)40 –
apareceu um sarcófago atribuível à alta Idade Média (Fig. 9). Mas mais
ilustrativa, ainda, sobre a importância que Bordonhos teve nos sécs. X-XI, é a
grande necrópole descoberta nas suas imediações.
Fig. 9 – Sarcófago de Serrazes
Infelizmente, perdeu-se muita
informação sobre as condições do achado. Na proximidade da igreja paroquial, na
parte superior da freguesia e sobranceiros ao vale, irão surgir vários casais
que, ao que parece, não podem ser confundidos com o lugar a que hoje se chama
Cimo de Vila, mais próximo de Figueirosa 41. Ficariam aqueles casais junto ao
estratégico outeiro de Massarocas (Fig. 1), um morro que os habitantes da villa
Iben Ordonis outrora seguramente usavam para
estabelecer contacto directo, ou visual, com a uilla Abozamates. Esta última,
situada na margem oposta do rio Vouga e sensivelmente à mesma cota 42, era o
lugar do paço de Diogo Fernandes e Onega, tal como foi dito atrás. Ora, o
outeiro de Massarocas, devido à sua posição referencial no território e à respectiva
localização, à margem do tramo inicial da via que bifurcava em S. Pedro do Sul
– para seguir pela serra de Manhouce, em direcção ao noroeste – foi também o
local escolhido para implantar uma necrópole e, ao que parece, relativamente
extensa. Dela deu uma breve notícia Moreira de Figueiredo, no seu estudo sobre
a viação romana das Beiras, onde assinala o aparecimento de “uma grande
necrópole” de sepulturas escavadas
39 Portugal Antigo e Moderno, s. v. “Bordonhos”
40 Anteriores a esta data e nas redondezas de
Bordonhos, para além dos já citados, documentam-se ainda os seguintes lugares:
Anciães (LP 272 – uilla ansianes, 1092-1098); Ferreiros (DC 243 – uilla
ferrarius, 1019);
Pouves (DC 640 – villa paules,
1085); S. Pedro do Sul (DC 640 – eclesia que vocatur sancti petri,1085); Segadães
(DC 442 – uilla sagadanes, 1064); Várzea (DC 490 – eclesia uocabulo sancta
maria de uarzena,1070)
41 Figueirosa pertence também a Bordonhos. O
lugar de Cimo de Vila está documentado desde a Idade Média, por exemplo em
1448, num diploma que pertenceu ao mosteiro de Ferreira de Aves: “em o logo de boordonhos,
que chamam çíma de vila” . Cfr. RIBEIRO, M. J. Homem – Edição dos documentos
medievais do Cartório de Santa Eufémia de Ferreira de Aves, 2ª ed.. Lisboa,
1995, doc 110, p. 215-216 (consulta na internet, 2013.06.05, e http://pisapapeis.no.sapo.pt/TeseMestrado.html)
42 O outeiro das Massarocas atinge a cota dos 436
metros de altitude, enquanto o lugar de Moçâmedes anda entre os 400-420 metros.
E não é por acaso que, no sopé das Massarocas, existe o topónimo “Boavista”.
na rocha43. E o mais interessante
é que esta concentração de “arcas” ou “arkaria” vem referida já em 1101, num
documento relativo a Bordonhos, onde se menciona uma herdade com “ipso pumar,
comodo est recluso, et ipsa uinea que jacet ad arkaria, su ipsa casa de
Adosinda Salvadoriz” 44. No sopé do chamado alto das Massarocas, no lado sul,
subsiste ainda um troço de via
romana. Dão-nos conta desta calçada os autores do roteiro arqueológico da
região, que referem também a sua destruição em alguns pontos do traçado: “vai
do Bairro Belo Horizonte [em S. Pedro do Sul], atravessa as Maçarocas e passa
perto da Srª da Guia. A largura é de cerca 4, 60 m” 45. Era a via que, por
Santa Cruz da Trapa, contornava a serra da Grávia, seguindo para Manhouce –
onde há a referência a um marco miliário e restos da estrada antiga – e depois,
por Arouca ou por Vale de Cambra, entroncava com o eixo viário principal, que
ligaria às civitas de Santa Maria e de Portucale.
Como pode depreender-se da
descrição do traçado junto a S. Pedro do Sul, a uilla Iben Ordonis, naqueles
críticos anos de finais do séc. IX, podia passar despercebida ao abrigo do
outeiro das Massarocas, sem contudo deixar de aproveitar da proximidade desta
via estratégica e, ao mesmo tempo, de desfrutar o fértil vale de Bordonhos. O
sistema defensivo dos novos senhores de Lafões-Viseu
Uma análise da documentação que
chegou até nós, a respeito dos descendentes de Diogo Fernandes e Onega,
demonstra que terá havido uma preocupação por parte destes senhores em alargar
a sua área de influência, prioritariamente, a duas regiões: o Entre Côa e
Távora, a norte de Trancoso, e o médio vale do Mondego, a montante da barreira
natural existente na zona de Penacova. É assunto de que já demos uma
breve notícia 46 e que iremos
desenvolver proximamente noutros dois trabalhos, cada qual dedicado à
respectiva região. Por agora, o que interessa sublinhar, é a explicação que
deve ser dada, neste contexto, para a insólita posse dos castelos do Côa por
parte de Flâmula Rodrigues, incluídos no testamento que faz ao mosteiro de
Guimarães, em 960. Ela era filha de Rodrigo Tedones, que se tornara genro de
Diogo Fernandes e Onega, por casamento com Leodegúndia. Tudo leva a crer que,
nessa condição, Rodrigo Tedones terá sido encarregado da defesa de Viseu contra
qualquer investida que pudesse ameaçar Bermudo e seu clã, a partir de Leon ou
Astorga. Na verdade, seria essa a principal função dos castelos do Côa, que
dominam claramente os trajectos do nordeste. A outro dos genros de Diogo
Fernandes, Alvito Lucides, que veio a casar
com Múnia, terá sido confiada a
responsabilidade por outra mandatione, no acidentado território da bacia média
do Mondego, a qual defendia este grupo de uma qualquer ameaça que pudesse
surgir desde Coimbra. Assim nos leva a pensar uma série de bens
43 MARQUES, José Adolfo de Meneses – Op. cit.,
2000, p. 120
44 LP 468. No dizer do autor referido na nota
anterior, “as sepulturas, em número indeterminado, estavam localizadas numa
zona de encosta, actualmente coberta por vinhas e campos de cultivo, entre o
alto de Massarocas e o lugar de Novais”. Pelo teor do documento, é provável que
tais “archas” ou “arkas” se desenvolvessem também para o outro lado do morro,
da banda de Bordonhos.
45 VAZ, João L. Inês – Op. cit., 1993, vol. 1, p.
376-378; PEDRO, Ivone; VAZ, João L. Inês; ADOLFO, Jorge – Roteiro arqueológico
da Região de Turismo de Dão-Lafões. Viseu, 1994, p. 126
46 Cfr. nota 21
que a família possuiu nos
concelhos de Oliveira do Hospital, Tábua e Penacova. É preciso não esquecer
que, no início do séc. X, a cidade de Coimbra era ainda um baluarte da linhagem
de confiança de Afonso III, a do mordomo Hermenegildo Guterres. Antes de chegar
a Coimbra, o rio Mondego atravessa uma barreira natural poderosíssima, constituída
pela serra do Bussaco (com uma atalaia na Portela da Oliveira) e pela serra
da Atalhada (provável corruptela
de “atalaia”, sobre a chamada via colimbriana), além de outras elevações
secundárias, as quais terão sido aproveitadas para estabelecer uma linha de
defesa estratégica, de que o castelo de Penacova deveria ser a cabeça. Em nosso
entender – e tentaremos demonstrá-lo mais tarde – este também se chegou a
denominar “Torre de Miranda” (nada tendo a ver, como pensamos, com Miranda do
Corvo) e a sua área de influência aparece mesmo referida num documento local,
como “terra de Miranda”. É por essa razão que, alguns anos mais tarde surge
também aí Ximeno Dias – o filho varão de Diogo Fernades e Onega – com funções
de juiz, numa disputa sobre os limites territoriais entre Vila Cova e
Alquinitia. Isto acontece em 936 ou seja, com toda a probabilidade, antes do
seu casamento com Ausenda Guterres, uma dama da estirpe “coimbrã”, cujo
matrimónio interpreto como uma tentativa, posterior e já noutro contexto, de
aproximação entre famílias rivais. Numa primeira fase, parece-nos que o próprio
mosteiro de Lorvão pode ter tido maiores ligações ao clã “lafonense” do que ao
“coimbrão”. Embora, mais tarde, ambas as linhagens demonstrem grande apego e
favorecimento a este cenóbio, uma mais precoce relação dos primeiros com Lorvão
é indiciada pelo documento de 928, que alude à satisfação de um desejo
formulado em vida pelo príncipe Bermudo (DC 34), e ainda pela refúgio
temporário dos monges na referida Torre de Miranda, após o incêndio que
danificou o edifício monástico, tal como alude um documento de 998 (DC 179) 47.
A implantação do mosteiro de Lorvão, afundado nas enrugadas serranias de
Penacova e ao abrigo do seu castelo, faz pensar numa ligação de proximidade
semelhante à que os monges de Guimarães tinham com o castelo vimaranense, no
alpe latito, cuja origem está na mesma família.
A este respeito – e para uma
perspectiva de conjunto sobre a distribuição das áreas de influência dos
descendentes de Diogo Fernandes e Onega – há que acrescentar mais algumas
notas. A primeira é a de que o controlo do médio do Vouga, a jusante de
Vouzela-S. Pedro do Sul, também parece ter sido considerado por esta linhagem, já que, na repartição da herança do conde
Hermenegildo Gonçalves, em 950 (DC 61), couberam ao filho Ramiro Mendes certos
bens situados entre Sever do Vouga e Oliveira de Frades (qui sunt in Centum
Cortes). Talvez estivesse inicialmente conferida a Hermenegildo – o terceiro
genro de Diogo Fernandes – a cobertura defensiva do corredor do Vouga, dentro
de uma lógica regional em que a cada genro caberia uma mandatione estratégica,
em ponto-chave para a defesa do território de Lafões-Viseu.
Em segundo lugar, há que referir
a nova missão que, mais tarde, irá recair sobre
47 Este incêndio pode ser
entendido, eventualmente, como um epifenómeno da passagem de Almançor por
Viseu, no ano anterior (997), quando se preparava para atacar Santiago de
Compostela. As campanhas
do caudilho cordovês estimularam
o aparecimento de oportunismos e acções de banditismo. É mesmo de crer que o
referido incêndio, que nesta ocasião atingiu o mosteiro de Lorvão, se relacione
com o assalto
de Ezerag de Condeixa, descrito
no célebre doc. 71 do Liber Testamentorum, sobre a disputa em torno dos moinhos
de Forma.
Hermenegildo Gonçalves e
Mumadona. Em 926, quando os problemas da rebeldia e ostracismo do clã estavam
já ultrapassados, é que se dá o avanço – poderemos dizer, em boa verdade, o
regresso… – deste grupo em direcção ao Entre-Douro e Minho. A criação do
efémero reino “portucalense” com capital em Viseu, entre 926-930, terá
conduzido o príncipe Ramiro a nomear o conde Hermenegildo para a região de
Braga-Guimarães. A sua preocupação em consolidar o domínio do novo reino sobre
os territórios mais a norte, levou-o, por assim dizer, à revitalização do
condado de Portucale, colocando-o nas mãos de um dos mais confiáveis
auxiliares, que entretanto havia casado com a sua conlaça, a condessa Mumadona
Dias. É o que se deduz da entrega da villa de Creixomil (DC 31), que deve ter
servido de ponto de fixação na zona de Guimarães, vindo depois a ser
substituída pelo paço de Santa Marinha da Costa.
Levantamos hoje a hipótese de ter
sucedido algo semelhante relativamente à tenência de Lamego, exactamente pela
mesma época, na pessoa de Rodrigo Tedones. Não nos esqueçamos que este último
deveria ser, já na altura, o detentor do senhorio de Numão e dos castelos do
Côa. No entanto, verifica-se que a respectiva descendência veio ainda a herdar
várias propriedades na periferia imediata da cidade Lamego 48.
Tudo isto resultou de um conjunto
de necessidades, que foram evoluindo em face da situação histórica da Beira
interior. E teve consequências práticas, não apenas do ponto de vista militar,
como no caso da construção dos castelos do Côa – dos quais Mário Barroca ainda
conseguiu identificar, quase intacta, a torre de Trancoso – mas também no
domínio da arquitectura religiosa. O tutela, por parte de distintos ramos da
citada estirpe, de verdadeiros comissa territoriais e, simultaneamente, do
senhorio de bens localizados em concelhos como os de Oliveira do Hospital, Vila
Nova de Foz Côa e Lamego, ajuda a entender algumas das afinidades existentes
entre as basílicas de Lourosa, Prazo e Balsemão (Fig. 10), cujo avoengo
asturiano é inequívoco e para o qual já havíamos chamado a atenção
anteriormente 49.
Fig. 10 – Comparação entre as
plantas de S. Pedro de Lourosa (Oliveira do Hospital),
S. João do Prazo (Vila Nova de
Foz Côa) e S. Pedro de Balsemão (Lamego).
Desenhos do autor com base em
levantamentos, respectivamente, da DGEMN/Paulo A. Fernandes,
de A. N. Sá Coixão e D. José
Pessanha; arranjo gráfico de Cláudio Almeida.
Não sabemos se a capela de S. Martinho, das Caldas de Lafões,
também obedecia a uma planta de três naves, do tipo das anteriores. Como essa
parte foi destruída, só uma sondagem arqueológica poderá, eventualmente,
solucionar a questão 50. Para já, fica-nos a convicção de que, pelo menos, a
abside de S. Martinho faz parte do mesmo ciclo artístico que acompanhou o processo
de senhorialização da estremadura astur-leonesa no sul da Gallaecia, se bem que
temporariamente à margem da política oficial da corte, mas sob directa
influência asturiana.
48 Iremos desenvolver este
assunto nas primeiras Conferências do Museu de Lamego/CITCEM (Lamego, 8-9 Novembro
2013), numa comunicação intitulada “O significado da basílica do Prazo (Vila
Nova de Foz Côa), na alta Idade Média duriense”.
49 REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2006, p. 98 e
107
50 Segundo António Pires da Silva, na sua
Chronographia medicinal das Caldas de Alafões, editada em 1696, este templo
chegou a ser “Matriz de todas as Igrejas circumvisinhas” e nele foi baptizado
S. Frei Gil (nascido Vouzela, entre 1184 e 1190). Nos finais do séc. XVII,
porém, a vetusta igreja já tinha caído em ruína e decerto há bastantes anos,
pois a parte subsistente mostra evidências de que houve uma recuperação parcial
já na baixa Idade Média. Ainda de acordo com as palavras do citado autor, ela
“está hoje [1696] posta nos alicerces; & só se conserva a Capella Mor,
aonde a 20 de Mayo vem as Freguesias, que lhe erão sujeitas, tributar a antiga
sujeição. O que fazem vindo cada Freguesia com Ladainha visitar a Casa do
Santo, que está junto ao banho para a parte do Oriente, aonde se vem claramente
os alicerces do corpo da Igreja”. Sublinhado nosso, com transcrição a partir
de: OLIVEIRA, A. Nazaré de – Para a História da Região e do Concelho: Lafões –
esboço histórico. Tribuna de Lafões. Nº 1114. S. Pedro do Sul (30.01.1991)
O castro de Nª Sª da Guia no
contexto do sistema defensivo do clã senhorial
A região de Lafões tinha como
cabeça de território a fortificação à sombra da qual viria a nascer a uilla
quam uocitant Uauzela, documentada com seu mosteiro já em 1083 (LP 331).
Trata-se da eminência hoje conhecida por monte da Senhora do Castelo, onde se
domina grande parte das terras sob a sua alçada, a começar pelas socialmente estratégicas
Caldas de Lafões, à distância de uma escassa meia légua (Fig. 1). A primeira alusão
ao território alaphoen remonta a 1002, numa venda de propriedades situadas na uilla
cercosa (DC 190). A função militar deste castelo é-nos mencionada, pela
primeira vez, a propósito de uma algara sobre a região, de que dá notícia
al-Muwa‘ini. Dozy atribui esta investida ao rei da taifa de Sevilha, Abu
l-Qasim, com a provável conivência dos aftásidas de Badajoz, podendo a mesma
ter ocorrido entre 1023-1033.
O termo “alahobeines”, referido
num documento do lado cristão, sensivelmente contemporâneo 51, deriva do árabe
al-ahwayn, que significa “os dois irmãos”. Tal designação parece resultar do
nome que era dado aos montes gémeos que dominam a orografia de Vouzela – o
Lafão e o da Srª do Castelo – os quais, ao que se deduz de tal expressão,
poderiam partilhar, entre si, as funções de defesa e administração do
território (fig. 11). É uma matéria que hoje é difícil de debater, já que o
monte da Srª do Castelo, com a sua penedia ciclópica e a capela implantada no
cabeço superior, deixa pouca margem para pesquisas em profundidade. Amorim
Girão, na base do escadório de acesso à capela e fora do perímetro amuralhado,
identificou duas sepulturas abertas na rocha, as quais ainda lá hoje se
conservam. E João Inês Vaz, em recolhas de superfície, descobriu “fragmentos de
cerâmicas tipicamente castrejas e romanas”. Por outro lado, Amorim Girão dá
também a notícia de ter encontrado estruturas de muralha no monte Lafão 52.
Quanto a nós, é uma questão ainda em aberto, a da complementaridade dos dois
castros. Mas, a ser verdade tal hipótese, um deles desempenharia essencialmente
funções militares, enquanto o outro poderia ter uma maior vocação
administrativa e boas condições para albergar um povoado cabeça-de-Terra. Este
último seria o Lafão, já que o coroamento rochoso da Sª do Castelo é menos
propício para a manutenção de um aldeamento e, apesar da sua menor altitude 53,
está melhor posicionado do ponto de vista militar. À função administrativa do
lugar, independentemente da questão da sua eventual duplicidade orgânica,
refere-se o já citado documento de 1030, sobre o lugarde Figueirosa, onde,
perante os “iudices de alahobeines … et ante multas faces bonas (sic)”, foi
resolvido um problema de falso testemunho num processo de venda 54. Não
obstante a incerteza sobre a partilha funcional entre ambos os montes – que só
uma cuidada pesquisa arqueológica no Lafão pode resolver, se se vier a
comprovar que também este foi ocupado durante a alta Idade Média – estamos
inclinados a aceitá-la, tanto mais que no sopé se conserva o topónimo
“Asneiros”, no plural, o que deve constituir alusão à presença de dois hisns.
No entanto, pela posição que ocupa relativamente a Valgode e
51 DC 268, datado do ano 1030.
52 GIRÃO, Aristides Amorim – Antiguidades
pré-históricas de Lafões. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1921, p. 5; VAZ,
João L. Inês – Op. cit., 1993, vol. 1, p. 175
53 Com os seus 538 metros, contra os 601 do monte
Lafão.
54 DC 268
por ser expressamente designado
como “castro” (mons Castro Alafoei), parece ser claro que é ao morro da Srª do
Castelo que se refere um outro documento, de 1104. E o mesmo se dirá das
Inquirições de 1258, onde explicitamente aparece mencionado o castellum de
Alafone 55. Mas, a verdade, é que o coronímico “Lafão” ficou vinculado antes ao
outro monte, que lhe é gémeo. Entendemos admissível que, nesta altura, já a
função estratégica de ambos os morros tenha diminuído, em favor da crescente importância
adquirida pela vila de Vouzela, ao redor do respectivo mosteiro.
Como era prática da época, as
eminências com função de cabeça-de-Terra articulavam-se com outros dispositivos
de vigilância e defesa que, em conjunto, constituíam um verdadeiro sistema de
segurança territorial. Algumas estruturas castrenses tinham a função de apoiar
militarmente lugares considerados importantes, como um mosteiro, uma povoação
ou uma habitação senhorial. Outras, de tipo mais ligeiro, serviam para
controlar as vias de comunicação – em determinados locais estratégicos, como
portelas, pontes, etc. – e, se necessário, para accionar dispositivos
de comunicação à distância,
através de sinais com codificação visual 56. Neste último caso, em
complementaridade ao castelo de Lafões deveria estar, na margem esquerda da ribeira
de Ribamá, a atalaia (Fig.11) que controlava a passagem da Ponte Pedrinha – no morro,
ainda hoje, denominado “Atalaia” – e uma outra que, presumivelmente, terá precedido
a actual torre de Paços de Vilharigues.
Fig. 11 – Vista geral dos montes Lafão (A) e de Nª Sª do Castelo (B).
Mais em baixo, ainda se vê parte do monte da Atalaia (C), que fica sobranceiro à ribeira de Ribamá.
Ambas tinham a função de garantir a
segurança da via que ligava Viseu ao litoral e passava na base da Senhora do
Castelo.
Na margem oposta, um dos lugares
que dispunha de melhores condições para desempenhar o papel de ligação com o
castelo de Vouzela e para, simultaneamente, alargar o sistema de vigilância a
outra importante faixa de território – atravessada via inter-regional
alternativa 57, nas faldas da serra de Arados – seria o monte da Senhora da Guia,
em Baiões (Fig. 1) 58. Por outro lado, este antigo castro encontrava-se numa
posição estratégica perfeita para a segurança do paço de Bordonhos, onde, em
nossa opinião, se teria instalado o príncipe rebelde Bermudo Ordonhes. É
possível que estivesse apoiado ainda por outras atalaias secundárias e de
proximidade, como o castro dos Súmios ou do Mau Vizinho, na Ucha. Situado junto
ao vale do rio Sul, este reduto prevenia a
terra de Lafões de qualquer
surpresa que pudesse vir da estrada que ligava a Lamego, através de Castro
Daire. Terá sido por esta via que, na primeira metade do percurso, Fernando
Magno conseguiu contornar as quase intransponíveis defesas de Viseu, do sistema
de castelos do Côa. E, recuando século e meio, poderia a mesma rota servir a
eventuais intenções punitivas de Afonso III, relativamente ao “traidor” seu
irmão,
55 MARQUES, Jorge Adolfo de
Meneses – Vouzela: Património arqueológico. Sítios e rotas. Vouzela: Câmara Municipal,
2005, p. 70. Este autor afirma que a cronologia dos fragmentos de cerâmica
recentemente recolhidos “se pode balizar entre os sécs. X-XIII”.
56 O uso de bandeiras e de fachos, para uso civil
e militar, ainda era frequente no século XIX.
57 Referimo-nos à já citada via que, contornando
o maciço da Gralheira, passava por Manhouce, no sentido da Terra de Santa Maria,
onde entroncava com a via principal, em direcção a Portucale.
58 A posição estratégica da
Senhora da Guia é bastante mais relevante do que a de mero controlo de um lugar
de passagem. Outrora, despido do actual arvoredo, do mesmo posto de observação
conseguia-se, no castro de Baiões, alcançar a vista de todas as serranias que
cercam o planalto beirão: Caramulo, Arada, Montemuro, Leomil, Marofa e Estrela.
pelo que se explica bem a
localização daquele posto de vigía. Outro castelo roqueiro de alguma
importância para a segurança dos senhores de Lafões, nesta passagem do séc. IX para
o X, deve ter sido o de Alcofra. Localizava-se no chamado “Castêlo”, em Cabo de
Vila, na freguesia de Alcofra59, e serviu para vigiar uma outra via secundária,
que ligava Vouzela a Águeda. Presumivelmente, foi aí implantado para cortar
qualquer iniciativa hostil que pudesse vir de Coimbra, por este itinerário,
alternativo aos de Penacova e Santa Comba60. Sobre o próprio planalto de
Carvalhais-Bordonhos devia, do lado norte, existir também algum dispositivo
subsidiário de vigilância. Não é de descartar a hipótese do castro da Cárcoda
ter cumprido essa missão, já que foi reocupado em
época tardo-antiga e, segundo
João Inês Vaz, também na alta Idade Média 61. Uma possibilidade alternativa –
se não mesmo complementar – pode ter constituído o pequeno outeiro do lugar de
Mota, na parte alta da freguesia de Carvalhais. Visitamos o local e um pouco
acima da actual “Casa da Mota”, junto à travessa das Alagoas, existe uma
elevação de terreno cuja aparência física se assemelha a um desses assentos castrenses
da alta Idade Média. Na parte setentrional, menos afectada pelas construções que
implantaram no cimo do pequeno morro, a sugestão é enorme, inclusivamente de um
possível fosso, por onde corre água e dá justificação ao designativo “Alagoas”.
Trata-se, assim, de um caso a merecer estudo, através de sondagens
arqueológicas, tanto mais
que há poucos exemplos
identificados em Portugal.
O tema do castro da Senhora da
Guia causa-nos alguma perplexidade, pois nenhum dos estudos até hoje publicados
apresenta evidências consistentes para identificar a sua reocupação na alta
Idade Média e, muito menos, para saber qual o tipo de uso ou função que
porventura teve nessa época. No entanto, acalentamos a suspeita de que tenha
havido uma efectiva reutilização, como atalaia ou castelo. Isto deve-se, não apenas
pelo que, sobre ele, nos diz o Santuário Mariano e pelas razões da natureza histórica
e topográfica já acima expostas, mas também por algumas incertezas que as próprias
escavações suscitaram nos arqueólogos que procederam ao estudo do castro.
Se é certo que Philine Kalb
chegou a defender uma grande unidade entre o espólio exumado, atribuível à
Idade do Bronze, ela própria reconheceu não ter conseguido distinguir a
estratigrafia com clareza, nas suas escavações. Socorrendo-nos da síntese que
sobre a matéria deu A. B. Lopes, na sua tese sobre o material cerâmico de
Baiões, notaremos que, já em 1973, aquela investigadora dizia ter havido
dificuldade “em documentar existência de estratigrafia definida; a camada de
terra que recobre o solo rochoso é diminuta e a mistura nela de elementos de
decomposição vegetal e uma certa erupção do terreno, devido ao arranque de
árvores e a revolvimentos em busca de tesouros, tornam difícil a determinação
da existência de estratos”. No entanto, em 1977, referia que as peças
encontradas nas camadas inferiores aparentavam um estado de conservação
homogéneo, o que contrastava com pequenas peças polidas ou peças que
apresentavam fracturas antigas, encontradas em níveis superiores e na parte
alta da povoação 62.
59 Identificado por MARQUES, Jorge Afonso de
Meneses – Op. cit., 1999, p. 39. 60 Também na Serra do Caramulo podemos ver uma
atalaia complementar no alto do Guardão.
61 Op. cit., p. 86.
62 LOPES, António Baptista – Op. cit., 1993, p.
34.
As escavações de Armando Coelho
F. da Silva também não permitiram grande conclusão do ponto de vista
estratigráfico. No dizer do seu colaborador mais próximo, A. B. Lopes, alguns
problemas se levantaram em consequência disso: “Causa certa surpresa a presença
de cerâmica impressa em Baiões, de mistura com cerâmica do Bronze Final, grafitada,
pontilhada e incisa. Na sua tese de doutoramento, Armando Coelho F. da Silva
inclui-a na fase II. Mas é de notar que em Baiões a estratigrafia não é
confirmável e põe incómodos problemas a associação dos dois tipos de cerâmica
na mesma estação, aparentemente em estratos indiferenciáveis”63. Na continuação
do seu testemunho, o citado autor deixa-nos ainda a convicção de que foram
efectivamente encontradas as
primeiras evidências, se bem que
ainda ténues, de que o castro foi reocupado, pelo menos temporariamente e em
escala reduzida. Antes de tudo, é de sublinhar a indicação de que ficou de fora
do seu estudo “algum espólio cerâmico notoriamente denotando contaminações no
conjunto da produção local”. Alguns destes fabricos apresentavam “pastas
arenosas e friáveis”, características que, em nosso entender, não excluem poder
tratar-se de fragmentos de cronologia posterior. Aliás, a existência de espólio
mais tardio confirmou-se, inequivocamente, com o aparecimento de duas moedas do
séc. IV d. C. e de cerâmicas romanas, “embora raríssimas”. Finalmente – e
sobretudo – há que realçar que “da Idade Média detectou-se um pequeno fragmento
cinzento, com pasta típica” 64.
Apesar de quase insignificante,
este testemunho é mais do que suficiente para lançar a ideia de que o castro de
Baiões sofreu uma reocupação medieval. Por outro lado, é de lembrar que só nos
últimos anos se tem prestado a devida atenção às cerâmicas da alta Idade Média
e que estas, muitas vezes, se confundem com cerâmicas proto-históricas.
A esse respeito – mas sem
querermos com isto dizer que temos bases para contestar a sua classificação – é
de referir que, no período suevo-visigodo, há peças com a mesma forma e técnica
decorativa de alguns vasos publicados por A. B. Lopes 65. E embora sem questionar
a existência de uma ocupação posterior à época romana, por falta de dados, Ivone
Pedro também salienta que a vida do povoado não se pode ter limitado à Idade do
Bronze, apesar de que “a extensão e intensidade destas ocupações é, no entanto,
difícil de determinar”. E sublinha mais um dado interessante, citando Armando
Coelho F. da Silva, sobre o aparecimento dos fragmentos de cerâmicas
estampilhadas. Eles provêm de uma pequena sondagem realizada a SO da capela, “precisamente
na zona oposta onde se recolheu o conhecido conjunto de cerâmicas e metais do
Bronze Final” 66. Também J. C. Senna-Martinez abordou a questão das cerâmicas
com decoração estampilhada, dizendo que teriam sido encontradas “apenas nos
níveis superficiais da escavação de Monsenhor Celso Tavares da Silva”. Para
aquele investigador, “poderão estar associadas
63 Idem, p. 172.
64 Idem, p. 161.
65 Nomeadamente aquele que designa por IV-A-1
(fig. 11). Embora sem esquecer que o material de Baiões tem sido equiparado ao
de outras estações proto-históricas da Beira interior, fundamentamos esta observação
em peças que apareceram associadas à chamada basílica do Largo D. Duarte, em
Viseu, para quais chamou a atenção João I. Vaz e as data por volta do séc. VI-VII
d. C. Seria importante comparar as respectivas pastas e técnicas de acabamento,
pois a mera observação formal nada garante que se esteja a falar da mesma
coisa.
66 PEDRO, Ivone – Op. cit., 2000, p.135.
à destruição do sítio”, embora
remeta o abandono do castro para o período de crise e redefinição de
equilíbrios no Ocidente Mediterrânico, durante o séc. VI a. C.67. Será pois de
todo o interesse uma nova observação dos materiais da fase II de Baiões (Fig. 12)
e, principalmente, daqueles que não foram seleccionados para o estudo de A. B. Lopes,
em parte por serem considerados de fabrico exógeno 68.
Fig. 12 – Vaso de cerâmica
estampilhada, classíficado da fase II de Baiões.
Desenho de A. Baptista Lopes.
A concluir, não queremos deixar
de lembrar a hipótese deixada por A. de Almeida Fernandes, sobre a origem do
topónimo Baiões, já que nada leva a crer que possa tratar-se de um nome de
família, relacionado com a estirpe que se desenvolveu a norte do Douro e que
nada tem a ver com a região de Lafões. Segundo aquele ilustre medievalista, depois
de lembrar que o topónimo se localiza numa zona de forte influência moçarábica,
pode-se “ver em Vaiões uma forma anterior Vaiones, plural do n. pessoal ár.
Walid (Ualid), isto é Walidones, pois que plurais românicos de antropónimos
arábicos não faltam” 69. É bom lembrar que se chamava precisamente al-Walid o
califa omíada (705-715), em nome do qual se deu a invasão árabe da Península e
se realizaram os primeiros pactos com a população indígena. No dizer de uma
crónica árabe, em Gilliqiya, da qual esta região fazia parte, “as suas gentes
foram a Muça, pedindo-lhe um acordo”. E segundo P. Chalmeta, já acima citado,
estava-se no ano de 714. Ora, pode dar-se o caso de que as tais “gentes do
pacto” tenham deixado na toponímia local, não apenas a memória do lugar onde se
deu um desses acordos (Sulh), mas também da fortaleza donde elas passaram a ser
controladas pelos súbditos de al-Walid (Walidones).
Toda esta problemática é do
máximo interesse, tanto mais que se trata da abordagem de uma época ainda mal
conhecida e da contextualização da presença em território português, nos
inícios do século X, de um Príncipe asturiano (Bermudo Ordonhes) e de um Rei
(Ramiro) que, depois de se assumir enquanto tal, ainda em Viseu, irá tornar-se um
dos mais prestigiados monarcas leoneses, vencedor do califa Abd al-Rahman III,
na memorável batalha de Simancas.
67 SENNA-MARTINEZ, João Carlos – Entre Atlântico
e Mediterrâneo: Algumas reflexões sobre o grupo Baiões/Santa Luzia e o
desenvolvimento do Bronze Final peninsular, in A Idade do Bronze em Portugal: discursos
do poder. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 1995, p.122.
68 É indispensável que o Centro Regional das
Beiras, da Universidade Católica Portuguesa – actual guardiã do espólio da
castro de Baiões – reúna condições para que tais materiais voltem a estar
disponíveis, para
efeito de pesquisas
complementares, como esta, que tem o objectivo de avaliar a possibilidade da
Senhora da Guia ter tido uma ocupação alto-medieval, por restrita que fosse a
estrutura militar da época.
69 FERNANDES, A. de Almeida – A toponímia da
Beira Alta no “Dicionário Onomástico etimológico”
de José Pedro Machado. Beira
Alta. 48:3-4. Viseu (1989) 385-386.
Fonte:
Revista da Faculdade de Letras
CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÓNIO
Porto 2013
Volume XII, pp. 203-230
Manuel Luís REAL
CITCEM
REAL, Manuel Luís - O Castro de
Baiões terá servido de atalaia ou castelo, na Alta idade Média? (...)
Revista da Faculdade de Letras
CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÓNIO, Porto 2013 - Vol. XII, pp. 203-230
© Carlos Coelho
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