quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

São Pedro do Sul - O Castro de Baiões

O Castro de Baiões

O Castro de Baiões terá servido de atalaia ou castelo, na Alta Idade Média?
Sua provável relação com o refúgio de Bermudo Ordonhes na Terra de Lafões

Resumo

O castro da Senhora da Guia, em Baiões, é uma das estações arqueológicas da Idade do Bronze mais importantes, em território português. Na alta Idade Média ter-se-á refugiado na sua proximidade o príncipe asturiano Bermudo Ordonhes, na sequência da revolta contra o seu irmão, o rei Afonso Magno.
O contexto histórico, conjugado com alguns dados arqueológicos e a análise do território, à época, fazem crer que o castro da Senhora da Guia tenha sido reutilizado com atalaia ou castelo, nos sécs. IX-X, senão já anteriormente.

Palavras chave:
Senhora da Guia, Baiões, Viseu, Terra de Lafões, Bermudo Ordonhes, Afonso Magno, Senhorialização, Pré-românico.

No princípio do séc. XVII, Frei Agostinho de Santa Maria, no Santuário Mariano, refere-se ao monte da Senhora da Guia (Fig. 1), na freguesia de Baiões - S. Pedro do Sul, nos seguintes termos: “No tempo em que os Mouros presistiam por aquellas terras, he tradição constante, que havia naquelle monte huma fortaleza, ou atalaya, que era o seu receptaculo, & a ladroeyra de donde sahião a roubar, & a infestar os Cristãos”.

Fig.1 – Vista a partir da encosta norte do monte de Nossa Senhora do Castelo (Vouzela):
A – Castro da Senhora da Guia, Baiões; B – Monte das Massarocas, Bordonhos; C – Caldas de S. Pedro do Sul. Em último plano vê-se a Serra da Arada.

Estes, na sequência das dificuldades sofridas, costumavam invocar o apoio de Nossa Senhora e “lhe prometterão, & fizerão voto de lhe edificar naquele mesmo monte, & fortaleza ou atalaya, huma Ermida, &… a Senhora ouvindo as suas rogativas, os guiàra & favorecèra, de sorte, que totalmente destruirão os Mouros”. E em acção de graças e cumprimento do seu voto, depois de pacificada a sua terra, os Cristãos “lhe levantarão aquella Casa…; & porque a Senhora os guiou, & lhes deo vencimento contra seus inimigos, lhe impuserão o titulo de Guia” 1.
A mesma tradição, de que este castro “fora antigamente receptaculo de Mouros”, é relatada pelo pároco de Baiões, na Memória Paroquial de 1758, acrescentando que “ajuda a esta credulidade ver-se ainda na raiz do oiteiro vestígios de muro, couza mui tosca e antiga, e outro mais junto à hermida… mas em cima não há signal algum de castello ou couza similhante” 2. Alguns anos antes, no Inquérito Paroquial efectuado entre 1747-1751, mantinha-se a afirmação que ali “houvera huma atalaya dos Mouros, e a provão com as ruínas de hum muro que ainda hoje se vem e esta persuasão os faz entender que os Mouros deixarião naquelle sitio algum thesouro escondido, por cuja causa são muitos os que ali vão cavar junto dos penedos; mas sem effeito” 3. É ainda provável que, por esta época, tenha havido movimento de terras no cabeço do morro, dado que a Irmandade de Nossa Senhora da Guia viu os seus estatutos aprovados em 17594, sendo de admitir que a Ermida do Monte do Castro – como é aí referida – e respectiva envolvência tenham sofrido algum melhoramento. O interesse dos arqueólogos por este povoado acentuou-se em 1947, após o aparecimento de dois torques e um bracelete de ouro maciço, na sequência de umas terraplanagens mandadas efectuar pela Junta da Freguesia, em redor do santuário 5.
Em 1971, o castro de Baiões voltou a ser notícia com a descoberta ocasional de alguns machados de talão, típicos da Idade do Bronze durante o alargamento de caminhos. Esta nova revelação terá estimulado Monsenhor Celso Tavares de Silva, dois anos depois, a iniciar escavações no local – onde volta em 1977 – começando-se então a revelar estruturas do primitivo povoado. A riqueza dos achados veio também a suscitar interesse por parte de Philine Kalb 6, que, em vários estudos, deu destaque internacional ao castro de Baiões. É de salientar a análise de C-14, que então promoveu, a partir de um fragmento de madeira descoberto no interior do alvado de uma ponta de lança. Este forneceu a datação de cerca 700 a. C., com uma margem de erro de, mais ou menos, 130 anos. Confirmava-se, assim, a cronologia sugerida por comparação.

1 SANTA MARIA, Agostinho de, Frei – Santuário Mariano e historia das imagens milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente aparecidas, em graça dos pregadores e dos devotos da mesma Senhora. 2ª ed.. S. l: Alcalá, 2006-2008, T. V, L. II, p. 260-262 e 289-291 (edição facsímile da obra editada em 1716).

2 CAPELA, José Viriato; MATOS, Henrique – As freguesias do Distrito de Viseu nas Memórias Paroquiais de 1758: Memórias, História e Património. Braga: José Viriato Capela, 2010, p. 494.

3 Idem, p. 1018

4 ALVES, Alexandre – Novas achegas para a história da antiga Diocese de Viseu. Beira Alta. 30:1. Viseu (1971) 143-144.

5 Um outro torques de ouro viria a aparecer, em 1971, junto ao cemitério da vizinha freguesia de Serrazes.

6 Investigadora do Instituto Arqueológico Alemão, a cujas investigações se associou posteriormente Martin Höck.

tipológica de alguns achados anteriores e que, segundo se pensava, apontariam para o enquadramento deste povoado na cultura do chamado Bronze Atlântico.
O castro de Baiões reservaria ainda uma outra surpresa, em 1982, aquando da abertura de um poço artesiano e respectiva vala para encanamento da água. Na ocasião, encontrou-se um valioso depósito de fundidor, do final da Idade do Bronze, ao qual dedicou especial atenção o homenageado, Prof. Doutor Armando Coelho Ferreira da Silva, coadjuvado então por Celso Tavares da Silva e António Baptista Lopes. Além da descoberta de vários moldes e de peças sem sinais de uso e com rebarbas, há que salientar a grande variedade tipológica representada. Entre a cerca de meia centena de objectos exumados são de referir utensílios de uso doméstico (machados, foicinhas e taças), armas (pontas de lança e punhal), elementos de adorno (braceletes variados e argolas) e objectos considerados de culto (carros votivos, peças tubulares, uma furcula, uma ponteira, etc.). A transcendência desta descoberta levou a uma intervenção de emergência, por parte dos citados arqueólogos, a qual permitiu identificar o sítio do depósito e contextualizar os achados (Fig. 2). 

Fig. 2 – Plataforma superior do monte da Senhora da Guia,
com a implantação dos locais de escavação arqueológica.
Desenho de Philine Kalb.

O interesse deste conjunto, aliado à reconhecida importância das descobertas precedentes, levariam estes mesmos investigadores a considerar que o castro de Baiões “ocupa já um lugar especial entre as estações castrejas do Noroeste peninsular” 7.
A própria cerâmica de Baiões evidencia características muito específicas, as quais têm chamado a atenção dos estudiosos e permitido conhecer melhor a dinâmica da produção regional, integrando-a em contextos mais alargados, dentro do período em questão. Um dos autores da monografia sobre o depósito de fundidor, António Baptista Lopes, acabaria mais tarde por se dedicar a um estudo de síntese sobre as cerâmicas deste castro, em tese para a obtenção do grau de Mestre, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
A bibliografia sobre o Castro da Senhora da Guia é hoje já bastante extensa e, em grande medida, de conteúdos muito especializados. 8

7 SILVA, Armando Coelho Ferreira da; SILVA, Celso Tavares da; LOPES, António Baptista – Depósito de fundidor do final da Idade do Bronze do Castro da Senhora da Guia (Baiões, S. Pedro do Sul, Viseu).
Lucerna: Homenagem a D. Domingos de Pinho Brandão. Porto (1984) 73-109.

8 Apresentamos aqui a lista dos trabalhos monográficos mais relevantes:
ARMBRUSTER, B. – A metalurgia da Idade do Bronze Final Atlântico do castro de Nossa Senhora da Guia, de Baiões (S. Pedro do Sul, Viseu). Estudos Pré-Históricos. 10-11. Viseu (2002-2003) 145-155 KALB, Philine – Uma data de C14 para o Bronze Atlântico. Arqueólogo Português. Série III: 7-9. Lisboa (1974-77) 141-144.

Id. – Senhora da Guia, Baiões. Die Ausgrabung 1977 auf einer hensiedlung der atlantischer Bronzezeit in Portugal. Madrider Mitteilungen. 19. Madrid (1978) 112-138.
Id. – Contribución para el estúdio del Bronce atlântico: Excavaciones en el castro “Senhora da Guia” de Baiões (Concelho de São Pedro do Sul). In Congreso Nacional de Arqueologia, 15º (Lugo, 1977) – Actas. Zaragoza: 1979, p. 581-591.

Id. – O Bronze atlântico em Portugal. Revista de Guimarães. 90. Guimarães (1980) 113-120.

Id. – As xorcas de ouro do Castro Senhora da Guia, Baiões (Concelho de S. Pedro do Sul, Portugal). O Arqueólogo Português. Série IV: 8-10. Lisboa (1990-1992) 259-276 [versão portuguesa do artigo “Die Goldring vom Castro Senhora da Guia, Baiões”, em Internationale  Archäologie. 1. Berlin (1991) 185-200].

Id. – O povoado da Nossa Senhora da Guia, Baiões; O tesouro de Baiões. In A Idade do Bronze em Portugal: Discursos do poder. Lisboa: Museu Nacional de arqueologia, 1995, p. 68 e 101.

Todavia, ela diz respeito sobretudo ao espólio exumado, havendo poucos
elementos publicados sobre as estruturas habitacionais e o sistema defensivo do castro. Também faltam dados seguros do ponto de vista estratigráfico, ausência justificada pela dificuldade de interpretação dos sedimentos – de consistência e coloração bastante homogéneas – pela pouca altura dos mesmos e pelo aparente revolvimento dos solos. No entanto, Philine Kalb chegou a defender uma ocupação relativamente concentrada no tempo, dada a coerência cronológica que encontrava no conjunto do espólio. Este pressuposto não se verificou, mais tarde, embora seja certo que o período nuclear de ocupação do castro é anterior à Idade do Ferro, tendo depois o povoado sofrido um prolongado abandono.

Id.; HÖCK, Martin – Cerâmica da Sra. da Guia, Baiões e peças comparáveis do Sul de Portugal na exposição “Cerâmica de Alpiarça”. Suplemento ao catálogo. In Cerâmica de Alpiarça, Viseu, 1985, 3-4.

LOPES, António Baptista – A cerâmica do castro da Senhora da Guia (Baiões): Tecnologia e morfotipologia. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 1993.

MEDEROS MARTIN, Alfredo – Metal para los dioses. La sequencia del grupo de Baiões durante el Bronce Final II y el comercio chipriota de hierro hacia Portugal (1200-1050 a. C.). In Estudios de Prehistoria y Arqueologia en Homenaje a Pilar Acosta Martínez. Sevilla, 2009, p. 279-304.
PEDRO, Yvone – O castro da Senhora da Guia (S. Pedro do Sul, Viseu). In Por terras de Viriato. Arqueologia da região de Viseu. Lisboa: Governo Civil do Distrito de Viseu; Museu Nacional de Arqueologia, 2000, p. 142-135.

SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos – O grupo Baiões / Santa Luzia: contribuições para uma tipologia da olaria. Trabalhos em Arqueologia da EAM. 1. Lisboa: Colibri (1993) 93-123.

SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos – Between myth and reality: the foundry área of Senhora da Guia de Baiões and Baiões/Santa Luzia metallurgy. Trabalhos de Arqueologia da EAM. 6. Lisboa: Colibri (2000)
61-77

SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos – Produção, ostentação e redistribuição: estrutura social e economia política no grupo Baiões/Santa Luzia.

SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos – “Um mundo entre mundos”. O grupo Baiões / Santa Luzia, sociedade, metalurgia e relações inter-regionais. Iberografias. 6. Guarda: Centro de Estudos Ibéricos (2010)
13-26.

SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos et alii – Metallurgy and society in “Baiões/Santa Luzia” group: results of the MetaBronze project. In Povoamento e exploração dos recursos mineiros na Europa atlântica occidental. Braga: CITCEM; APEQ, 2011, p. 405-420.

SCHATTNER, Thomas G. – Sobre los carros com copa de Baiões. Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la Universidad Autónoma de Madrid. 37-38. Madrid (2011-2012) 263-295.

SILVA, A. R. P. – Carbonized grains and plant imprints in ceramics from the castrum of Baiões (Beira Alta, Portugal). Folia Quaternaria. 47. Krakov: 1976 (sep.).

SILVA, Armando Coelho Ferreira da; SILVA, Celso Tavares; LOPES, António Baptista – Depósito de fundidor do final da Idade do Bronze do Castro da Senhora da Guia (Baiões, S. Pedro do Sul, Viseu). Lucerna. Porto: Centro de Estudos Humanísticos, 1984, p. 73-110.

SILVA, Celso Tavares – Cerâmica típica da Beira Alta. In Jornadas Arqueológicas: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 3ª (Lisboa, 1977) – Actas. Lisboa: A. A. P., 1978, p. 185-196.

Id – O Castro de Baiões (S. Pedro do Sul). Beira Alta. 38:3. Viseu (1979) 510-531.

VALÉRIO, Pedro – Caracterização química de produções metalúrgicas do castro da Senhora da Guia de Baiões (Bronze Final). Lisboa: Faculdade de Ciências da Universidade de L., 2005

VALÉRIO, Pedro et alii – Caracterização química de produções metalúrgicas do Castro da Senhora da Guia de Baiões (Bronze Final). Arqueólogo Português. Série IV: 24. Lisboa (2006) 283-319.

Agradecemos a João Inês Vaz a informação sobre algumas das contribuições bibliográficas mais recentes, sobre o castro de Baiões.

Além dos estudos dedicados monograficamente à estação arqueológica de Baiões, muitos outros haveria que citar, de natureza mais abrangente, mas desviar-nos-íamos dos objectivos do presente ensaio, que intenta questionar a possível existência de um horizonte de ocupação alto-medieval, apesar de serem pouco esclarecedores, nesse sentido, os registos até ao momento identificados e publicados. Entre as obras gerais, não podemos, porém, deixar de referir a dissertação de doutoramento do homenageado, sobre a Cultura castreja do noroeste peninsular, onde amiúde se fazem referências – prolongadas referências – ao castro de Nossa Senhora da Guia 9.
Basicamente, o autor integra a produção de Baiões naquilo que denomina por Fase I e Fase II, podendo esta última chegar aos sécs. IV-III a. C. Seguir-se-ia um prolongado hiato de abandono, até possivelmente à época tardo romana, relativamente à qual surgiram escassos materiais, embora suficientes para testemunhar um qualquer tipo de reocupação. Contra o que inicialmente se pensava, vinculando os achados de Baiões essencialmente ao chamado Bronze Atlântico, os materiais da Senhora da Guia mostram já “indicadores de um quadro de presenças e relações de maior complexidade” 10. Esta realidade é igualmente salientada por outros autores, que apontam para a existência, desde cedo, de contactos inseridos num mais vasto horizonte peninsular, através da Meseta ocidental. Na segunda fase, tais relações alargam-se a influências de origem mediterrânica, em simultâneo com correntes post-hallstáticas de origem centro europeia.
A concluir este apontamento inicial, sobre o castro de Baiões e a arqueologia, merecem salientar-se duas outras ocorrências que têm chamado a atenção dos investigadores. Por um lado, a coexistência do fabrico de peças metálicas com o uso de materiais líticos, circunstância que levou erroneamente, em tempos, a pensar-se que haveria um período de ocupação ainda mais antigo. Por outro, o aparecimento daquela que foi, porventura, a primeira presença conhecida de um objecto de ferro em
contextos do Bronze Final, no território português e, no caso vertente, representada por uma lâmina de punhal com cabo de bronze.

A Terra de Lafões na alta Idade Média

Como vimos, já em época proto-histórica a região de Viseu ocupava um posição privilegiada nas relações entre o ocidente peninsular e as culturas centro-europeia e mediterrânica. Esta função estratégica ir-se-á reforçar com o Império romano, nomeadamente através da ligação da Bética e da capital da Lusitânia com as regiões mineiras do noroeste. Durante os reinos bárbaros, se bem que várias localidades da Beira interior tenham conhecido cunhagens de moeda, o palco dos acontecimentos políticos, em território português, desloca-se sobretudo para o noroeste e para o litoral.
Entretanto, a invasão islâmica fez emergir uma nova entidade político-cultural, o al-Andalus, cujas consequências vão ser determinantes para a transformação das Beiras como terra de fronteira. A região de Viseu vê assim reforçada a sua posição estratégica, mas, devido precisamente à fluidez dessa fronteira, a sua existência passa a estar

9  SILVA, Armando Coelho Ferreira da – A cultura castreja no noroeste de Portugal. Paços de Ferreira: Museu Arqueológico da Citânia de Sanfins, 1986.

10 Idem, p. 118.

recheada de cambiantes, característicos de um território de passagem e exposto a acções de guerra ou guerrilha, mas também enquanto zona propícia a contextos de isolamento e à isenção de soberania estatal. Por outro lado, esta não deixará de aproveitar dos períodos de coexistência pacífica entre os principais contendores e, deliberadamente, permanecerá sempre aberta a contactos informais entre populações vizinhas.
As fontes documentais dão-nos informação de que os árabes, devido em grande medida à desproporção numérica relativamente à população local, preferiram, sempre que possível, pactuar com as populações locais, garantindo-lhes o direito de propriedade e a liberdade de culto, desde que aceitassem determinadas condições, entre as quais a obediência e o pagamento de imposto. Houve cidades que tiveram que ser tomadas pela força, como Sevilha e Beja, mas nas zonas em que a transição foi pacífica, preparam-se acordos de capitulação que garantiam à população hispânica uma relativa estabilidade. O pacto mais conhecido é o da região de Tudmir (Múrcia), cujas cláusulas chegaram até nós. Mas há notícia da existência de outros acordos, como o da cidade de Lisboa ou os que tiveram lugar nas chamadas “terras altas”, que P. Chalmeta acredita corresponderem a “toda a zona astur-galaica” 11. O mesmo autor, entre as áreas
geográficas em que houve pactos, considera toda a faixa ocidental desde o rio Sado às rias galegas. A cartografia que apresenta, inclui uma larga banda ao longo da costa portuguesa que, no que corresponde às Beiras, abrange por inteiro a área de Viseu-Lafões. É de referir que, para o século XI, há a notícia de uma investida muçulmana a partir de Sevilha, durante a qual, na região de Lafões, foram encontradas populações cristãs aí estabelecidas desde há longo tempo. Mesmo que se duvide da existência de gentes da tribo Gassânida, de origem síria, a alusão à permanência de uma forte comunidade moçárabe é digna de inteiro crédito 12. Um testemunho da concentração, em Lafões, de um grupo significativo de herdeiros dos subscritores de um “pacto” – ao tempo da campanha vitoriosa de ‘Abd al- ‘Aziz – pode possivelmente identificar-se na toponímia local. Tem havido alguma dificuldade em explicar a presença do onomástico “Sul”, atribuído a duas localidades – a sede concelhia e a povoação de Sul, um pouco mais a norte – e ao próprio afluente do rio Vouga, que cruza um vale povoado desde longa data 13. Em nosso entender, é bem provável que estejamos perante a evocação, na

11 CHALMETA, Pedro – Invasión e islamización: La sumisión de Hispânia y la formación de al- Andalus. Madrid: Editorial Mapfre, 1994, p. 215-218.

12  Cyrille Aillet é de opinião que a referência à algara sobre o presumível grupo cristão, de etnia Gassânida, é uma mistificação inserida numa gesta literária tendente a valorizar a dinastia abádida de Sevilha. Cfr. Les Mozarabes. Christianisme, Islamisation et arabisation en Péninsule Ibérique (IX-XII siécle). Madrid: Casa Velázquez, 2010, p. 300. Na realidade, os Gassânidas eram cristãos árabes que migraram no séc. III d. C., do actual Yémen para o sul da Síria. As suas tribos tornaram-se vassalas do Império bizantino, envolvendose, depois, na guerra deste último contra o Estado persa. O pequeno reino Gassânida desapareceu em meados do séc. VII, durante a conquista muçulmana da Síria. Este facto fragiliza a ideia de uma migração de membros da tribo para a Península – em pleno domínio visigodo – mas não a possibilidade da invocação mítica de uma derrota do mesmo grupo de cristãos, agora no ocidente peninsular, perante uma dinastia que reivindicava a origem síria dos seus antepassados.

13  Jorge Alarcão chegou a levantar a hipótese da estância balnear de S. Pedro do Sul ter possuído, originalmente, o nome de Aquae Sulis, à semelhança do que sucedeu em Bath, na Britania romana, em virtude da designação atribuída a uma divindade ligada à cura com águas termais. Porém, não apareceu até memória popular, do vocábulo árabe sulh, que significa “pacto” 14.
O mais natural é que a região se tenha transformado num mosaico social e cultural, onde, a par da população indígena, convivesse gente de outras etnias, nomeadamente berberes, os quais se haviam inicialmente estabelecido mais a norte e recuaram para as Beiras, em grande número, após a rebelião de 741 d. C. Alguns poderão ter mesmo abraçado a religião cristã, como serão eventualmente os antepassados daquele Cotama Cotamiz que, em 933, confirma a doação do rei Ramiro II ao mosteiro de Lorvão. Houve também, sem dúvida, hispano-godos que aderiram ao Islão por influência dos seus novos senhores, por razões de ordem prática ou por mero oportunismo. Eram os chamados muwalladun ou muladis. Mas a maioria da população Lafonense pode ter-se mantido fiel à religião dos seus antepassados, embora não possamos saber, em concreto, como se deu a sua evolução. O mesmo não se poderá dizer quanto a outros aspectos da vida quotidiana, como a própria língua, onde os vestígios de uma aculturação intensa estão patentes na toponímia e nos nomes dos habitantes, registados em documentos da época.
O vale do Vouga foi recuperado pela monarquia astur-leonesa entre as décadas de 60/70 do séc. IX, na sequência das presúrias do Porto, Coimbra e Viseu. No entanto, com Almançor (c. 987 d.C.) a região voltou à posse do califado de Córdova e, pouco depois da morte daquele, passou a depender da taifa de Badajoz. Ao fim deste segundo período de domínio muçulmano – que terá durado pouco mais de 70 anos – a região de Lafões regressou à posse cristã, o mais tardar em 1064 d.C., data da reconquista de Coimbra por Fernando Magno.

A chegada do clã senhorial opositor a Afonso Magno

Corria o ano de 866 quando Afonso III foi coroado rei das Astúrias. Tinha apenas dezoito anos à data da morte de seu pai, Ordonho I, mas já desde 862 acompanhava este no governo da Galiza, da qual se intitulava “rei”, embora subordinado à tutela do progenitor, que reinava em Oviedo. A Galiza foi, desde cedo, um quebra-cabeças para a corte asturiana, devido à resistência de uma classe senhorial radicada na região e que sentia ter interesses a defender. A fórmula encontrada pela realeza astur, com alguma lógica, passava pela nomeação de um governo de proximidade e, em simultâneo, criava condições para que o príncipe escolhido se fosse preparando para, mais tarde, assumir por inteiro as responsabilidades da governação do Reino. Todavia, o princípio da hereditariedade do trono não era regra consensual numa monarquia que tinha, como referente, o direito visigodo. Assim, mal tivera tempo de se instalar em Oviedo, hoje qualquer epígrafe que o confirmasse e, além disso, o étimo “Sulis” choca com a forma como o nome sistematicamente aparece referido na documentação medieval: “Sur”.
Sobre a hipótese da ascendência romana do topónimo, vd: ALARCÃO, Jorge – Geografia política e religipsa da civitas de Viseu. In Actas do I Colóquio Arqueológico de Viseu. Viseu: Governo Civil do Distrito de V., 1989, p. 307; e VAZ, João L. Inês – – A Civitas de Viseu: Espaço e sociedade. Coimbra: Comissão de Coordenação da Região Centro, 1993, vol. 1, p. 200-202.

14  No Livro Petro da Sé de Coimbra, entre 1092 e 1108, aparecem vinte e nove documentos com a alusão a “ribulo sur”, “aquas ad Sur”, etc. E a villa de São Pedro (onde no século XI aparece já o mosteiro, mas apenas designado pelo orago da respectiva igreja, sem referência ao topónimo) surge em 1128 com o designativo actual: “villa Sancti Petri de Sur”.

já Afonso se via a braços com uma forte rebelião liderada pelo conde de Lugo, Fruela Bermudes, que avançou sobre a capital e se auto proclamou rei, obrigando o herdeiro do trono a refugiar-se no condado de Castela. Aqui, ele recebe pronto auxílio por parte do conde Rodrigo, que, à frente dos seus homens, se dirigiu a Oviedo, prendeu o chefe da revolta e voltou a colocar o Afonso no trono. O reinado deste monarca, que as crónicas – por si patrocinadas – apelidaram de Magno, durou quase 45 anos. Contudo, foi fértil em rebeliões, a maioria delas partindo, ora de nobres radicados na Galiza oude habitantes da Vascónia, ora dos próprios familiares mais chegados.
Não cabe aqui descrevê-las em pormenor, mas gostaríamos de salientar a do conde Hermenegildo Peres, irmão do presor de Portucale, durante a encadeada crise de 885-886, crise esta que contribuiu para reforçar o poder de uma outra linhagem, presumível concorrente, a do conde Hermenegildo Guterres. Por essa altura, o antigo presor de Coimbra, como reconhecimento pelo seu dedicado empenho na defesa do rei Magno, viu-se recompensado por este com a nomeação para o cargo de mordomo da Corte.
Já antes, talvez por volta de 880, os próprios irmãos do monarca tinham maquinado a morte de Afonso. Narra a Crónica de Sampiro que Fruela, Bermudo, Nuno e Odoario se rebelaram contra o rei Magno, que os veio a derrotar e, como castigo, lhes aplicou uma das penas mais contundentes, à época, que era a desorbitação dos olhos. É provável que tenha havido uma posterior reconciliação, pelo menos com parte dos irmãos, e não é seguro que a pena da cegueira tenha sido aplicada a todos eles. O mais insubmisso parece ter sido Bermudo, que, anos mais tarde, voltaria a revoltar-se. Sendo obrigado a fugir de Oviedo, refugiou-se em Astorga, onde, ainda segundo Sampiro, impôs a sua “tirania” durante sete anos. O príncipe Bermudo encontrava-se cego, mas estaria
acompanhado por um conjunto de fiéis servidores e contava com apoios na vizinha terra de Bierzo, a que se juntaram – conforme é expressamente referido – aliados muçulmanos. Por fim, Afonso Magno consegue dar-lhes luta em campo aberto, nas proximidades de Grajal, derrotando as hostes de Bermudo, que se vê obrigado a fugir para “terra de mouros”. Na sequência desta sua vitória, Afonso III castigou duramente as populações de Astorga e Ventosa.
A sintética notícia transmitida por Sampiro – clérigo nascido em meados do séc. X e próximo do cenário dos acontecimentos que relata – foi aceite pela maioria dos historiadores, mas veio a ser contestada por uns quantos, dos quais se destaca Armando Cotarelo Valledor, o principal biógrafo do rei Afonso Magno15. Em defesa da veracidade do relato do cronista bergidense salientou-se A. Quintana Prieto 16, que desmonta uma série de incongruências de Cotarelo17. Além disso, circunscreveu a rebelião de Astorga entre 891-898, aproximadamente, e acrescentou novos dados, como o comportamento do bispo Ranulfo, o possível motivo do atraso da sagração da nova basílica de Santiago

15  Historia crítica y documentada de la vida y acciones de Alfonso III el Magno, último rey de Astúrias. Madrid: Librería General de Victoriano Suárez, 1933.

16  La “Tirania” de Bermudo, el Ciego, en Astorga. Leon, 1967 (sep. de “Archivos Leoneses”, nº 41)

17 A obra de Cotarelo, apesar da sua utilidade, está eivada de imprecisões quando se refere a membros de linhagens astur-leonesas e a certos acontecimentos ligados ao território português, como na versão que dá das presúrias do Porto e Coimbra. É de recordar que esta biografia de Afonso Magno precede, em cerca de quinze anos, o estudo “refundador” de Emílio Saez, a propósito dos ascendentes de S. Rosendo.

de Compostela (cuja obra já estaria terminada em 896) e a identificação dos campos de Grajal e do castro de Ventosa 18.
Tem sido praticamente consensual que Bermudo Ordonhes, depois de expulso de Astorga, se refugiou na região de Lafões, apoiado por um grupo de nobres que aí se radicaram, à sombra da família de Diogo Fernandes e Onega, os pais da célebre condessa Mumadona Dias. Na verdade, dois documentos do século X, um com a participação da própria Onega, já viúva, e outro em nome da filha Múnia, evocam o saudoso príncipe Bermudo nos seguintes termos: “domnissimi nostri domini Veremudi diue memorie” ou “pro memorie dominissimi mei domni ueremudi diue memorie” 19.
A propósito do príncipe Bermudo, como tivemos oportunidade de acentuar em estudo anterior, “não terá sido por acaso que escolheu a zona de Viseu, já que a ela estaria ligado o presor de Chaves, Odoário (comes castelle et viseo)20, que se pensa ser igualmente irmão do rei e com ele entrou em conflito. Afonso Magno teve problemas também com este outro irmão, pois os seus bens ser-lhe-ão confiscados. Tudo isto se conjuga com a presença, igualmente nesta região, de outros presumíveis dissidentes, os futuros genros de Diogo Fernandes e Onega, que pertenciam às linhagens que, em nosso entender, terão sido espoliadas do comando dos territoria de Tude et Portucale, por Hermenegildo Guterres. Alvito Nunes era neto de Vímara Peres e, tanto Hermenegildo Gonçalves,
como Rodrigo Tedones, são descendentes de Afonso Betote, o presor de Tui. O marido de Mumadona Dias era ainda, pelo lado feminino, bisneto do rebelde Hermenegildo Peres, irmão de Vímara, cuja filha casara com Afonso Betote. Os membros deste grupo, até à deposição de Afonso Magno (910), terão funcionado com uma certa liberdade, enquanto verdadeiros chefes de fronteira, numa zona onde a realeza e o emirato não possuíam grande capacidade para se impor” 21.

A escolha do lugar: entre Moçâmedes e Bordonhos, na zona das Caldas de Lafões

Não se sabe desde quando Diogo Fernandes e Onega se estabeleceram na região de Lafões. Terão estado com Bermudo em Astorga, fazendo parte do séquito que o acompanhou na fuga para “terra de mouros”? Não é impossível que se tenham instalado antes mesmo da derrota de Bermudo em Grajal (c. 898) ou, pelo menos, que já nessa altura mantivessem contactos com membros da nobreza que aí se veio a acoitar, descontentes com o Rei e ambiciosos por alcançar novos domínios 22. Mas não

18  Segundo este autor, a refrega ter-se-ia dado em Grajal de la Ribera (c. La Antígua) e não em Grajal de Campos. O destino da fortificação Ventosa, que foi cabeça da terra de Bierzo, voltou a ser tratado por José A. Balboa de Paz, in Castro de Ventosa en la Edad Media. “Actas de las Jornadas sobre Castro Ventosa”. Cacabelos: Patronato del Património Cultural de C., 2003, p.131-154.

19 DC 34 e 107 (passaremos a designar sempre desta forma os documentos publicados nos Portugalia e Monumenta Histórica Diplomata et Chartae).

20  Esta “Castela” diz respeito a uma região da Galiza ligada ao conde Odoário, que foi patrono do mosteiro de Santa Comba de Bande.

21  A dinâmica cultural em “Portucale” e “Colimbrie” nos séculos VIII-XI. Texto introdutório às Actas do 1º Encontro de Cerâmica Medieval do Norte e Centro de Portugal (Conimbriga, 1912), no prelo.

22  Neste âmbito há também que equacionar a colonização da Terra de Santa Maria, com ramificações para o vale do Vouga, por parte do irmão de Diogo, Ero Fernandes, governador de Lugo durante o

há qualquer rasto do seu percurso antes do final da primeira década de novecentos. Aquilo que se pode dar como certo é que Diogo Fernandes nunca aparece junto da corte astur-leonesa até 909, ano em que, precisamente, Afonso III está em decadência e prestes a ser destronado pelos filhos, com apoio da própria rainha Jimena. Outro dado relativamente seguro é o de que ele e Onega terão escolhido para residência o paço de Moçâmedes 23, sobranceiro às Caldas de Lafões, na margem sul do Vouga (Fig. 3).

Fig. 3 – Capela e entrada
da Quinta do Paço de
Moçâmedes

Aí terá sido educado também o príncipe Ramiro, que foi “rei” em Viseu (926-930) 24, antes de aceder ao trono de Leon.
O líder natural do clã rebelde seria Bermudo Ordonhes e tudo leva a crer que escolheu, como lugar de permanência, outro local nas vizinhanças das referidas termas de Lafões. Em nosso entender, terá assentado em Bordonhos, actual freguesia do concelho de S. Pedro do Sul, na margem direita do rio Vouga (figs. 4 e 5).

Fig. 4 – O planalto de
Bordonhos,
visto do adro da igreja:
à direita, está a Casa do Paço.

Fig. 5 – Portão da Casa do
Paço, em Bordonhos.

O documento mais antigo que se conhece sobre esta localidade data de 1030, aludindo-se aí ao “terminum Iben Ordonizi”; segue-se outro de 1098, que fala da compra, por parte de João Gosendes, de uma porção da “uilla quam nuncupant Iban Ordonis suptus montis Fuste discurrente rivulo Sur” 25.
Esta última carta está transcrita no Livro Preto da Sé de Coimbra, o qual inclui quinze documentos sobre a referida villa, que aparece citada com algumas variantes 26. A fórmula mais repetida é o onomástico de raiz árabe Iben Ordonis. Não nos devemos esquecer que estamos numa região desde cedo com forte presença de moçárabes, os quais, com o tempo, viram aumentar a pressão da cultura islâmica. Em linguagem vulgar na época, os referidos documentos aludem, em árabe, reinado de Ordonho II. Este magnate parece ter-se mantido numa posição de não hostilidade face a Afonso Magno e foi constituindo património no promissor território de Entre Douro e Mondego. Não se sabe, ao certo, o momento em que este processo se inicia. O matrimónio dos seus filhos, Ilduara e Gondesendo, com descendentes directos de Hermenegildo Guterres, o presor de Coimbra, pode ser um sinal de que procurava um equilíbrio diferente ao do seu irmão Diogo, no contexto das relações de poder no seio da monarquia astur-leonesa. A importante doação da viúva de Gondesendo Eriz, ao mosteiro de Lorvão, revela que as propriedades de família se haviam estendido até ao interior da Terra de Viseu. E uma prova indirecta desta realidade pode ser encontrada também na distribuição da riqueza fundiária da casa de Marnel, herdeira do património de Egas Eriz “Iala”, outro provável filho de Ero Fernandes.
Cfr. MATTOSO, José – A nobreza medieva portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 125-136; e MATTOSO, José; KRUS, Luís; ANDRADE, Amélia – O Castelo e a Feira. A Terra de Santa Maria nos
séculos XI a XIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 127-132.

23 Como se depreende de um documento de 928, lavrado na “villa abozamates”, sendo Onega já viúva (DC 34). Junto a Moçâmedes foi assinalada uma sepultura antropomórfica aberta no saibro e, na própria
Quinta do Paço, foram descobertos “pesos de tear e pedras com letras”. Cfr. MARQUES, Jorge Adolfo de Meneses – Sepulturas escavadas na rocha na região de Viseu. Viseu: Éden Gráfico, 2000, p. 177-178; e IDEM – Carta arqueológica do concelho de Vouzela. Vouzela: Câmara Municipal, 1999, p. 38.

24  SAEZ, Emílio – Ramiro II, rey de “Portugal” de 926 a 930. Revista Portuguesa de História, 3, Coimbra (1947) 271-290. A educação de Ramiro foi confiada a Diogo Fernandes e Onega, pelos seus progenitores, por volta do ano 900, ainda quando o futuro Ordonho II governava apenas na Galiza, da qual a região de Viseu constituía a marca meridional.~

25  DC 268 e 885.

26  LP 216, 221, 228, 229, 230, 231, 235, 467, 468, 470, 473, 475, 477, 478, 486. Usaremos a sigla LP, para citar os documentos deste mesmo códice, na sua última edição: Livro Preto: Cartulário da Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade, 1999.

ao nome do antigo proprietário da villa, que era o “filho de Ordonho”, ou seja, era alguém cujo pai seria sobejamente conhecido para servir de identificação a quem viveu naquele local. Em nosso entender terá sido, precisamente, o príncipe rebelde Bermudo Ordoñez, filho do rei Ordonho I e patriarca do clã senhorial de Lafões.
Bordonhos dista menos de uma légua das termas de S. Pedro do Sul. E uma prova complementar da presença deste príncipe das Astúrias vamos encontrá-la na capela de S. Martinho, junto aos antigos Banhos romanos (Fig. 6). 

Fig. 6 – Capela de São Martinho, anexa às termas romanas de S. Pedro do Sul.

A primeira pessoa a chamar a atenção para a origem antiga deste templo foi F. Russel Cortês, que publicou o fragmento de um ajimez, incluído num dos muros remontados após a ruína parcial do edifício 27. Tivemos a oportunidade de, mais recentemente, relacionar este fragmento de ajimez das Caldas de Lafões com uma peça, quase idêntica, existente na cabeceira da igreja asturiana de S. Salvador de Valdedios (Fig. 7) e que lhe pode ter servido de modelo 28.

Fig. 7 – a: ajimez de San Salvador de Valdedios (Astúrias);
b: comparação do mesmo ajimez com o fragmento existente na capela de São Martinho.
Arranjo gráfico de Cláudio Almeida.

Também tivemos o ensejo de contextualizar este achado, relacionando-o
com outras produções beirãs de matriz comum 29. A propósito de Valdedios, deve recordar-se que uma investigação atenta, sobre a arquitectura do templo, revelou que a lápide de sagração, datada de 893 d. C., é epigraficamente diferente das demais existentes na igreja e foi colocada à parte, sob um arco exterior. Nada tem a ver com a série de legendas colocadas nas portas e janelas, para descrever o significado de cada parte do edifício, de acordo com o respectivo programa original. Haverá, pois, dois momentos distintos, ideia esta que é também reforçada pela observação de um certo faseamento arquitectónico e de uma mudança no plano decorativo. A pintura mural do interior,
nomeadamente, levou a que várias inscrições tenham sido “cubiertas o
repicadas, por inútiles (o quizás por molestas?)”. Assim o considera César G. Castro Valdés, que fala ainda de uma possível damnatio memoria e, decerto como eventual consequência da guerra fratricida entre os filhos de Ordonho I. Em sua opinião, o mais viável é que estejamos perante a seguinte sequência: “construcción del edifício a cargo de un agente desconhecido; consagración en 893, com intervención, verosílmilmente, de Alfonso III, convocante de 7 obispos, y modificación arquitectónica en la lateral S. del templo (pórtico y capilla) así como decoración pictórica del interior” 30.
Também Javier Fernandez Conde recorda a luta entre Afonso Magno e os irmãos, ao questionar

27  Restos páleo-cristãos nas termas de S. Pedro do Sul. Viriatis: Boletim do Museu Grão Vasco. 1:1. Viseu (1957) 54-55.

28  REAL, Manuel Luís – A escultura decorativa em Portugal: o grupo “portucalense”. In Escultura decorativa tardorromana y altomedieval en la Península Ibérica. Madrid; Mérida: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2007, p.144-146.

29  IDEM – A arquitectura pré-românica do norte de Portugal. In Arte e Cultura da Galiza e Norte de Portugal. Vigo; Setúbal: Nova Galícia; Marina Editores, 2006, p.98 e 107. Sobre a influência asturiana nas Beiras, vd. tb.: FERNANDES, Paulo Almeida – Eclectismo. Classicismo.
Regionalismo. Os caminhos da arte cristã no Ocidente peninsular entre Afonso III e al-Mansur. In Muçulmanos e cristãos entre o Tejo e o Douro (Sécs. VIII a XIII). Palmela: Câmara Municipal de Palmela; Faculdade de Letras do Porto, 2005, p. 293-310; e IDEM – A igreja de São Pedro de Lourosa e a sua relação com a arte asturiana. Arqueologia Medieval. 10. Porto: Edições Afrontamento (2008) 21-40.

30  CASTRO VALDÉS, César Garcia de – Arqueologia Cristiana de la Alta Edad Media en Astúrias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 129-130.

o sentido do preâmbulo da epígrafe de sagração. E pergunta: “No poderíamos suponer que el autor del texto epigráfico de Valdediós está aludiendo a los sentimentos autênticos, vividos por el soberano, en una de las etapas más cruciales de su reinado? Parece que existen coincidências histórico-cronológicas que avalan dicha sugerencia” 31.
É de sublinhar que a lápide da sagração, embora não insira o nome do monarca, refere a larga comitiva de bispos que participou na cerimónia, o que só se explica num acto patrocinado pela corte de Oviedo. Por outro lado, ele acontece exactamente durante a segunda rebelião de Bermudo, cujo património poderia ter sido confiscado há já algum tempo. E, não menos revelador, verifica-se que estão presentes todos os bispos da grande Gallaecia, com a única excepção do da diocese de Viseu, o que leva a crer que esta cidade já então manteria uma postura dissidente, explicando também o sentido da posterior fuga de Bermudo para esta região.
As Caldas de Lafões ainda hoje mantêm o edifício termal da época romana (Fig.8), com parte dos seus muros conservados até ao nível da cobertura.

Fig. 8 – Trecho das termas romanas de S. Pedro do Sul.

E escavações arqueológicas, realizadas em dois momentos no século passado, revelaram a respectiva planta e fases de ocupação 32. A utilização destas termas continuou durante a alta Idade Média e mesmo depois, a ponto de aí se ter instalado a corte do primeiro rei de Portugal,
após o ferimento que sofreu no assalto a Badajoz33. E a responsabilidade de Bermudo Ordonhes pela construção da igreja de S. Martinho, nos derradeiros anos do séc. IX, parece quase segura. Hoje é uma pequena capela, distante cerca de vinte metros do pórtico de acesso às termas, mas, na origem, ela estaria praticamente colada ao edifício romano. Na baixa Idade Média entrou em ruína e foi-lhe retirada toda a aula basilical que, eventualmente, possuiria três naves. Só resta a capela-mor, muito transformada pela reconstrução a que esteve sujeita. A actual parede oeste possui um portal gótico, seguindo-se um átrio descoberto. Aquela parede, de fabrico tardo-medieval, encosta ao muro sul do templo, de muito má construção – o que se compreende, por ser obra efectuada ainda com parcos meios locais e distando talvez mais de uma década relativamente ao início de S. Pedro de Lourosa – mas demonstra que a parte inferior da fachada sul ainda conserva o aparelho primitivo 34.
A escolha de Moçâmedes e de Bordonhos, por parte desta elite insubmissa, explica-se por razões de segurança – tanto territorial, como topográfica – mas também pela proximidade da estância termal. Esta era uma preocupação suplementar, existente

31 FERNANDEZ CONDE, Francisco Javier – La fundacion de S. Salvador de Valdedios: Fuentes epigráficas. In La época de Alfonso III y San Salvador de Valdedios. Oviedo: Universidad de O., Deparamento de Historia y Artes, Área de Historia Medieval, 1994, p. 222.

32 FRADE, Helena; MOREIRA, José – A arquitectura das termas romanas de S. Pedro do Sul. S. Pedro do Sul: Câmara Municipal, 1993. Já anteriormente o local fora objecto de pesquisas arqueológicas: cfr. OLEIRO, J. M. Bairrão – Termas de S. Pedro do Sul. Humanitas, Nova Série: 4-5. Coimbra (1955-56) 279.

33 CRUZ, António – A Corte Portugalense em Alafões. In Tempos e Caminhos: Estudos de História. Porto, 1973, p. 17-35; SANTOS, Eduardo – As Termas de São Pedro do Sul: achegas para a sua história. Viseu, 1972 (sep. de “Beira Alta”); OLIVEIRA, A. Nazaré – Termas de S. Pedro do Sul (Antigas Caldas de Lafões). Viseu: Palimage Editores, 2002. 34 Segundo a tradição, terá sido nesta capela que foi baptizado São Frei Gil de Vouzela (ou de Santarém).

naquele tempo entre a nobreza e o alto clero. Mas outros motivos estiveram também presentes. Cingindo-nos ao caso de Bermudo Ordonhes, é de acentuar que a villa, por ele tomada 35, se encontrava numa posição estratégica invulgar. Ela situa-se na borda de um fértil planalto, com localização relativamente discreta, mas próxima de uma via alternativa de ligação entre Viseu e o litoral nortenho. Trata-se de um vale de altitude, com perfil ondulante, hoje inserido nas freguesias de Carvalhais e de Bordonhos (Fig.4). 


Ele encaixa-se entre a Serra da Arada (a norte) e a cordilheira que integra o Monte da Senhora da Guia (a sul), sendo lateralmente cingido pelos declives correspondentes aos vales dos rios Sul e Landeira. A sua superfície é cortada por uma densa malha de cursos de água secundários – daí não ser o terreno inteiramente plano – com destaque para a ribeira de Vilar e para o curso superior do Varosa. Este último recebe ainda as vertentes das ribeiras da Regadinha e de Constança. E, já no séc. XI, a documentação ilustra a excelente capacidade agrícola da zona, com referências tais como: super illo lavrario, arbures fructuosas uel infructuosas, leira, pascuis, liniolum, uineis, pamares (sic), perales, figales, castaniales, nugares, ceresales, etc. Por outro lado, em 1108, é mencionada a herdade de orral, hoje possivelmente o lugar de Eiró, na freguesia de Bordonhos 36, topónimo que parece derivar de “horreo” ou celeiro. O povoamento era já muito antigo nesta zona planáltica, como o testemunham os vizinhos castros da Cárcoda e da Senhora da Guia, além da necrópole tardo-romana de Germinade 37. A documentação respeitante a esta zona, anterior ao séc. XII, inclui a invulgar referência a “vici”, quando trata de definir o âmbito e a antiguidade da propriedade fundiária: por exemplo, em 1098, sobre a uilla Abanatus (Abados) per suis locis et uigos et terminos antiquos, (DC 875). Na verdade, são múltiplos os lugares deste pequeno território mencionados já em finais da alta Idade Média. É bem elucidativo o diploma de 1030, referente ao lugar de Figueirosa, justamente no sopé do castro da Senhora da Guia (DC 268). Ao descrever a herdade de Fikeirosa ele traça, como limites, os termos de Aberautis (distinta forma de designar Abados), Penso, Vilanoba (hoje talvez “Quinta Nova”, em Baiões) e Iben Ordonizi (Bordonhos). Trata-se de um perímetro facilmente perceptível na cartografia actual, onde o documento, na sequência dos pontos de passagem, ainda introduz um outro tópico, logo a seguir ao lugar de Bordonhos, deste modo: et inde fige se in termino de palacio. À frente, fecha-se o circuito em Abados, onde tinha começado, não dando pois margem para confusão deste tal “palacio” com outro lugar – “Paços” – existente bastante mais a norte, na freguesia de Carvalhais, e que também foi honra de fidalgos no séc. XIII.
No primeiro caso, trata-se seguramente do paço de Iben Ordonizi, ou seja, com toda a probabilidade, da residência outrora pertencente ao príncipe Bermudo Ordonhes 38.
Ainda hoje existe aí a Casa do Paço, um pouco abaixo da igreja de Bordonhos (Fig.35 Contíguo a Bordonhos existe o lugar de Prendedores, mas temos grande dúvida que o topónimo possa estar relacionado com as acções de presúria levadas a cabo por esta época.36 Segundo os responsáveis pela mais recente edição do Livro Preto: LP 223.

37  A respeito desta última, veja-se: GIRÃO, A. de Amorim – Necrópole romana de Germinade (S. Pedrodo Sul). O Arqueólogo Português. 26. Lisboa (1924) 249-250.

38 O vale onde está implantado o paço era conhecido, já no século XII, por Valle Ordonis ou Vaordonios, o que veio a dar “Bordonhos”.

4). E segundo Pinho Leal, no tempo de D. Dinis a honra de Bordonhos pertencia a D. Maria de Negrelos, por herança de seus avós. Um seu descendente, Gonçalo Anes Homem, foi o primeiro Morgado de Bordonhos. Sucedeu-lhe um irmão e, depois, o filho deste, Heitor Homem, que casou com D. Isabel de Sousa, razão por que os senhores de Bordonhos passaram a usar também as armas dos Sousas, as quais se vêm no “soberbo” mausoléu familiar existente na igreja da freguesia. Teve esta casa ainda representação dos apelidos Lemos e Alvim 39. E nas Memórias Paroquiais, de 1758, dizse que a igreja, com orago a S. João Baptista, é de padroado particular, sendo então a abade apresentado por Fradique Lopes de Souza Lemos, fidalgo de Sua Magestade. A maior parte da freguesia tinha vínculo ao morgadio dos Sousa Lemos, que era limitadopor padrões e marcos.
Um pouco abaixo da localidade de Bordonhos, mas para o lado oposto, em S. Salvador de Serrazes – que fica pegada às termas e figura já num documento de 1104 (LP 69, repetido em LP 321)40 – apareceu um sarcófago atribuível à alta Idade Média (Fig. 9). Mas mais ilustrativa, ainda, sobre a importância que Bordonhos teve nos sécs. X-XI, é a grande necrópole descoberta nas suas imediações.

Fig. 9 – Sarcófago de Serrazes

Infelizmente, perdeu-se muita informação sobre as condições do achado. Na proximidade da igreja paroquial, na parte superior da freguesia e sobranceiros ao vale, irão surgir vários casais que, ao que parece, não podem ser confundidos com o lugar a que hoje se chama Cimo de Vila, mais próximo de Figueirosa 41. Ficariam aqueles casais junto ao estratégico outeiro de Massarocas (Fig. 1), um morro que os habitantes da villa Iben Ordonis outrora seguramente usavam para estabelecer contacto directo, ou visual, com a uilla Abozamates. Esta última, situada na margem oposta do rio Vouga e sensivelmente à mesma cota 42, era o lugar do paço de Diogo Fernandes e Onega, tal como foi dito atrás. Ora, o outeiro de Massarocas, devido à sua posição referencial no território e à respectiva localização, à margem do tramo inicial da via que bifurcava em S. Pedro do Sul – para seguir pela serra de Manhouce, em direcção ao noroeste – foi também o local escolhido para implantar uma necrópole e, ao que parece, relativamente extensa. Dela deu uma breve notícia Moreira de Figueiredo, no seu estudo sobre a viação romana das Beiras, onde assinala o aparecimento de “uma grande necrópole” de sepulturas escavadas

39  Portugal Antigo e Moderno, s. v. “Bordonhos”

40  Anteriores a esta data e nas redondezas de Bordonhos, para além dos já citados, documentam-se ainda os seguintes lugares: Anciães (LP 272 – uilla ansianes, 1092-1098); Ferreiros (DC 243 – uilla ferrarius, 1019);
Pouves (DC 640 – villa paules, 1085); S. Pedro do Sul (DC 640 – eclesia que vocatur sancti petri,1085); Segadães (DC 442 – uilla sagadanes, 1064); Várzea (DC 490 – eclesia uocabulo sancta maria de uarzena,1070)

41  Figueirosa pertence também a Bordonhos. O lugar de Cimo de Vila está documentado desde a Idade Média, por exemplo em 1448, num diploma que pertenceu ao mosteiro de Ferreira de Aves: “em o logo de boordonhos, que chamam çíma de vila” . Cfr. RIBEIRO, M. J. Homem – Edição dos documentos medievais do Cartório de Santa Eufémia de Ferreira de Aves, 2ª ed.. Lisboa, 1995, doc 110, p. 215-216 (consulta na internet,  2013.06.05, e http://pisapapeis.no.sapo.pt/TeseMestrado.html)

42  O outeiro das Massarocas atinge a cota dos 436 metros de altitude, enquanto o lugar de Moçâmedes anda entre os 400-420 metros. E não é por acaso que, no sopé das Massarocas, existe o topónimo “Boavista”.

na rocha43. E o mais interessante é que esta concentração de “arcas” ou “arkaria” vem referida já em 1101, num documento relativo a Bordonhos, onde se menciona uma herdade com “ipso pumar, comodo est recluso, et ipsa uinea que jacet ad arkaria, su ipsa casa de Adosinda Salvadoriz” 44. No sopé do chamado alto das Massarocas, no lado sul,
subsiste ainda um troço de via romana. Dão-nos conta desta calçada os autores do roteiro arqueológico da região, que referem também a sua destruição em alguns pontos do traçado: “vai do Bairro Belo Horizonte [em S. Pedro do Sul], atravessa as Maçarocas e passa perto da Srª da Guia. A largura é de cerca 4, 60 m” 45. Era a via que, por Santa Cruz da Trapa, contornava a serra da Grávia, seguindo para Manhouce – onde há a referência a um marco miliário e restos da estrada antiga – e depois, por Arouca ou por Vale de Cambra, entroncava com o eixo viário principal, que ligaria às civitas de Santa Maria e de Portucale.
Como pode depreender-se da descrição do traçado junto a S. Pedro do Sul, a uilla Iben Ordonis, naqueles críticos anos de finais do séc. IX, podia passar despercebida ao abrigo do outeiro das Massarocas, sem contudo deixar de aproveitar da proximidade desta via estratégica e, ao mesmo tempo, de desfrutar o fértil vale de Bordonhos. O sistema defensivo dos novos senhores de Lafões-Viseu
Uma análise da documentação que chegou até nós, a respeito dos descendentes de Diogo Fernandes e Onega, demonstra que terá havido uma preocupação por parte destes senhores em alargar a sua área de influência, prioritariamente, a duas regiões: o Entre Côa e Távora, a norte de Trancoso, e o médio vale do Mondego, a montante da barreira natural existente na zona de Penacova. É assunto de que já demos uma
breve notícia 46 e que iremos desenvolver proximamente noutros dois trabalhos, cada qual dedicado à respectiva região. Por agora, o que interessa sublinhar, é a explicação que deve ser dada, neste contexto, para a insólita posse dos castelos do Côa por parte de Flâmula Rodrigues, incluídos no testamento que faz ao mosteiro de Guimarães, em 960. Ela era filha de Rodrigo Tedones, que se tornara genro de Diogo Fernandes e Onega, por casamento com Leodegúndia. Tudo leva a crer que, nessa condição, Rodrigo Tedones terá sido encarregado da defesa de Viseu contra qualquer investida que pudesse ameaçar Bermudo e seu clã, a partir de Leon ou Astorga. Na verdade, seria essa a principal função dos castelos do Côa, que dominam claramente os trajectos do nordeste. A outro dos genros de Diogo Fernandes, Alvito Lucides, que veio a casar
com Múnia, terá sido confiada a responsabilidade por outra mandatione, no acidentado território da bacia média do Mondego, a qual defendia este grupo de uma qualquer ameaça que pudesse surgir desde Coimbra. Assim nos leva a pensar uma série de bens

43  MARQUES, José Adolfo de Meneses – Op. cit., 2000, p. 120

44  LP 468. No dizer do autor referido na nota anterior, “as sepulturas, em número indeterminado, estavam localizadas numa zona de encosta, actualmente coberta por vinhas e campos de cultivo, entre o alto de Massarocas e o lugar de Novais”. Pelo teor do documento, é provável que tais “archas” ou “arkas” se desenvolvessem também para o outro lado do morro, da banda de Bordonhos.

45  VAZ, João L. Inês – Op. cit., 1993, vol. 1, p. 376-378; PEDRO, Ivone; VAZ, João L. Inês; ADOLFO, Jorge – Roteiro arqueológico da Região de Turismo de Dão-Lafões. Viseu, 1994, p. 126

46  Cfr. nota 21

que a família possuiu nos concelhos de Oliveira do Hospital, Tábua e Penacova. É preciso não esquecer que, no início do séc. X, a cidade de Coimbra era ainda um baluarte da linhagem de confiança de Afonso III, a do mordomo Hermenegildo Guterres. Antes de chegar a Coimbra, o rio Mondego atravessa uma barreira natural poderosíssima, constituída pela serra do Bussaco (com uma atalaia na Portela da Oliveira) e pela serra
da Atalhada (provável corruptela de “atalaia”, sobre a chamada via colimbriana), além de outras elevações secundárias, as quais terão sido aproveitadas para estabelecer uma linha de defesa estratégica, de que o castelo de Penacova deveria ser a cabeça. Em nosso entender – e tentaremos demonstrá-lo mais tarde – este também se chegou a denominar “Torre de Miranda” (nada tendo a ver, como pensamos, com Miranda do Corvo) e a sua área de influência aparece mesmo referida num documento local, como “terra de Miranda”. É por essa razão que, alguns anos mais tarde surge também aí Ximeno Dias – o filho varão de Diogo Fernades e Onega – com funções de juiz, numa disputa sobre os limites territoriais entre Vila Cova e Alquinitia. Isto acontece em 936 ou seja, com toda a probabilidade, antes do seu casamento com Ausenda Guterres, uma dama da estirpe “coimbrã”, cujo matrimónio interpreto como uma tentativa, posterior e já noutro contexto, de aproximação entre famílias rivais. Numa primeira fase, parece-nos que o próprio mosteiro de Lorvão pode ter tido maiores ligações ao clã “lafonense” do que ao “coimbrão”. Embora, mais tarde, ambas as linhagens demonstrem grande apego e favorecimento a este cenóbio, uma mais precoce relação dos primeiros com Lorvão é indiciada pelo documento de 928, que alude à satisfação de um desejo formulado em vida pelo príncipe Bermudo (DC 34), e ainda pela refúgio temporário dos monges na referida Torre de Miranda, após o incêndio que danificou o edifício monástico, tal como alude um documento de 998 (DC 179) 47. A implantação do mosteiro de Lorvão, afundado nas enrugadas serranias de Penacova e ao abrigo do seu castelo, faz pensar numa ligação de proximidade semelhante à que os monges de Guimarães tinham com o castelo vimaranense, no alpe latito, cuja origem está na mesma família.
A este respeito – e para uma perspectiva de conjunto sobre a distribuição das áreas de influência dos descendentes de Diogo Fernandes e Onega – há que acrescentar mais algumas notas. A primeira é a de que o controlo do médio do Vouga, a jusante de Vouzela-S. Pedro do Sul, também parece ter sido considerado por esta linhagem,  já que, na repartição da herança do conde Hermenegildo Gonçalves, em 950 (DC 61), couberam ao filho Ramiro Mendes certos bens situados entre Sever do Vouga e Oliveira de Frades (qui sunt in Centum Cortes). Talvez estivesse inicialmente conferida a Hermenegildo – o terceiro genro de Diogo Fernandes – a cobertura defensiva do corredor do Vouga, dentro de uma lógica regional em que a cada genro caberia uma mandatione estratégica, em ponto-chave para a defesa do território de Lafões-Viseu.
Em segundo lugar, há que referir a nova missão que, mais tarde, irá recair sobre

47 Este incêndio pode ser entendido, eventualmente, como um epifenómeno da passagem de Almançor por Viseu, no ano anterior (997), quando se preparava para atacar Santiago de Compostela. As campanhas
do caudilho cordovês estimularam o aparecimento de oportunismos e acções de banditismo. É mesmo de crer que o referido incêndio, que nesta ocasião atingiu o mosteiro de Lorvão, se relacione com o assalto
de Ezerag de Condeixa, descrito no célebre doc. 71 do Liber Testamentorum, sobre a disputa em torno dos moinhos de Forma.

Hermenegildo Gonçalves e Mumadona. Em 926, quando os problemas da rebeldia e ostracismo do clã estavam já ultrapassados, é que se dá o avanço – poderemos dizer, em boa verdade, o regresso… – deste grupo em direcção ao Entre-Douro e Minho. A criação do efémero reino “portucalense” com capital em Viseu, entre 926-930, terá conduzido o príncipe Ramiro a nomear o conde Hermenegildo para a região de Braga-Guimarães. A sua preocupação em consolidar o domínio do novo reino sobre os territórios mais a norte, levou-o, por assim dizer, à revitalização do condado de Portucale, colocando-o nas mãos de um dos mais confiáveis auxiliares, que entretanto havia casado com a sua conlaça, a condessa Mumadona Dias. É o que se deduz da entrega da villa de Creixomil (DC 31), que deve ter servido de ponto de fixação na zona de Guimarães, vindo depois a ser substituída pelo paço de Santa Marinha da Costa.
Levantamos hoje a hipótese de ter sucedido algo semelhante relativamente à tenência de Lamego, exactamente pela mesma época, na pessoa de Rodrigo Tedones. Não nos esqueçamos que este último deveria ser, já na altura, o detentor do senhorio de Numão e dos castelos do Côa. No entanto, verifica-se que a respectiva descendência veio ainda a herdar várias propriedades na periferia imediata da cidade Lamego 48.
Tudo isto resultou de um conjunto de necessidades, que foram evoluindo em face da situação histórica da Beira interior. E teve consequências práticas, não apenas do ponto de vista militar, como no caso da construção dos castelos do Côa – dos quais Mário Barroca ainda conseguiu identificar, quase intacta, a torre de Trancoso – mas também no domínio da arquitectura religiosa. O tutela, por parte de distintos ramos da citada estirpe, de verdadeiros comissa territoriais e, simultaneamente, do senhorio de bens localizados em concelhos como os de Oliveira do Hospital, Vila Nova de Foz Côa e Lamego, ajuda a entender algumas das afinidades existentes entre as basílicas de Lourosa, Prazo e Balsemão (Fig. 10), cujo avoengo asturiano é inequívoco e para o qual já havíamos chamado a atenção anteriormente 49.

Fig. 10 – Comparação entre as plantas de S. Pedro de Lourosa (Oliveira do Hospital),
S. João do Prazo (Vila Nova de Foz Côa) e S. Pedro de Balsemão (Lamego).
Desenhos do autor com base em levantamentos, respectivamente, da DGEMN/Paulo A. Fernandes,
de A. N. Sá Coixão e D. José Pessanha; arranjo gráfico de Cláudio Almeida.

Não sabemos se a capela de S. Martinho, das Caldas de Lafões, também obedecia a uma planta de três naves, do tipo das anteriores. Como essa parte foi destruída, só uma sondagem arqueológica poderá, eventualmente, solucionar a questão 50. Para já, fica-nos a convicção de que, pelo menos, a abside de S. Martinho faz parte do mesmo ciclo artístico que acompanhou o processo de senhorialização da estremadura astur-leonesa no sul da Gallaecia, se bem que temporariamente à margem da política oficial da corte, mas sob directa influência asturiana.

48 Iremos desenvolver este assunto nas primeiras Conferências do Museu de Lamego/CITCEM (Lamego, 8-9 Novembro 2013), numa comunicação intitulada “O significado da basílica do Prazo (Vila Nova de Foz Côa), na alta Idade Média duriense”.

49  REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2006, p. 98 e 107

50  Segundo António Pires da Silva, na sua Chronographia medicinal das Caldas de Alafões, editada em 1696, este templo chegou a ser “Matriz de todas as Igrejas circumvisinhas” e nele foi baptizado S. Frei Gil (nascido Vouzela, entre 1184 e 1190). Nos finais do séc. XVII, porém, a vetusta igreja já tinha caído em ruína e decerto há bastantes anos, pois a parte subsistente mostra evidências de que houve uma recuperação parcial já na baixa Idade Média. Ainda de acordo com as palavras do citado autor, ela “está hoje [1696] posta nos alicerces; & só se conserva a Capella Mor, aonde a 20 de Mayo vem as Freguesias, que lhe erão sujeitas, tributar a antiga sujeição. O que fazem vindo cada Freguesia com Ladainha visitar a Casa do Santo, que está junto ao banho para a parte do Oriente, aonde se vem claramente os alicerces do corpo da Igreja”. Sublinhado nosso, com transcrição a partir de: OLIVEIRA, A. Nazaré de – Para a História da Região e do Concelho: Lafões – esboço histórico. Tribuna de Lafões. Nº 1114. S. Pedro do Sul (30.01.1991)

O castro de Nª Sª da Guia no contexto do sistema defensivo do clã senhorial

A região de Lafões tinha como cabeça de território a fortificação à sombra da qual viria a nascer a uilla quam uocitant Uauzela, documentada com seu mosteiro já em 1083 (LP 331). Trata-se da eminência hoje conhecida por monte da Senhora do Castelo, onde se domina grande parte das terras sob a sua alçada, a começar pelas socialmente estratégicas Caldas de Lafões, à distância de uma escassa meia légua (Fig. 1). A primeira alusão ao território alaphoen remonta a 1002, numa venda de propriedades situadas na uilla cercosa (DC 190). A função militar deste castelo é-nos mencionada, pela primeira vez, a propósito de uma algara sobre a região, de que dá notícia al-Muwa‘ini. Dozy atribui esta investida ao rei da taifa de Sevilha, Abu l-Qasim, com a provável conivência dos aftásidas de Badajoz, podendo a mesma ter ocorrido entre 1023-1033.
O termo “alahobeines”, referido num documento do lado cristão, sensivelmente contemporâneo 51, deriva do árabe al-ahwayn, que significa “os dois irmãos”. Tal designação parece resultar do nome que era dado aos montes gémeos que dominam a orografia de Vouzela – o Lafão e o da Srª do Castelo – os quais, ao que se deduz de tal expressão, poderiam partilhar, entre si, as funções de defesa e administração do território (fig. 11). É uma matéria que hoje é difícil de debater, já que o monte da Srª do Castelo, com a sua penedia ciclópica e a capela implantada no cabeço superior, deixa pouca margem para pesquisas em profundidade. Amorim Girão, na base do escadório de acesso à capela e fora do perímetro amuralhado, identificou duas sepulturas abertas na rocha, as quais ainda lá hoje se conservam. E João Inês Vaz, em recolhas de superfície, descobriu “fragmentos de cerâmicas tipicamente castrejas e romanas”. Por outro lado, Amorim Girão dá também a notícia de ter encontrado estruturas de muralha no monte Lafão 52. Quanto a nós, é uma questão ainda em aberto, a da complementaridade dos dois castros. Mas, a ser verdade tal hipótese, um deles desempenharia essencialmente funções militares, enquanto o outro poderia ter uma maior vocação administrativa e boas condições para albergar um povoado cabeça-de-Terra. Este último seria o Lafão, já que o coroamento rochoso da Sª do Castelo é menos propício para a manutenção de um aldeamento e, apesar da sua menor altitude 53, está melhor posicionado do ponto de vista militar. À função administrativa do lugar, independentemente da questão da sua eventual duplicidade orgânica, refere-se o já citado documento de 1030, sobre o lugarde Figueirosa, onde, perante os “iudices de alahobeines … et ante multas faces bonas (sic)”, foi resolvido um problema de falso testemunho num processo de venda 54. Não obstante a incerteza sobre a partilha funcional entre ambos os montes – que só uma cuidada pesquisa arqueológica no Lafão pode resolver, se se vier a comprovar que também este foi ocupado durante a alta Idade Média – estamos inclinados a aceitá-la, tanto mais que no sopé se conserva o topónimo “Asneiros”, no plural, o que deve constituir alusão à presença de dois hisns. No entanto, pela posição que ocupa relativamente a Valgode e

51  DC 268, datado do ano 1030.

52  GIRÃO, Aristides Amorim – Antiguidades pré-históricas de Lafões. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1921, p. 5; VAZ, João L. Inês – Op. cit., 1993, vol. 1, p. 175

53  Com os seus 538 metros, contra os 601 do monte Lafão.

54  DC 268

por ser expressamente designado como “castro” (mons Castro Alafoei), parece ser claro que é ao morro da Srª do Castelo que se refere um outro documento, de 1104. E o mesmo se dirá das Inquirições de 1258, onde explicitamente aparece mencionado o castellum de Alafone 55. Mas, a verdade, é que o coronímico “Lafão” ficou vinculado antes ao outro monte, que lhe é gémeo. Entendemos admissível que, nesta altura, já a função estratégica de ambos os morros tenha diminuído, em favor da crescente importância adquirida pela vila de Vouzela, ao redor do respectivo mosteiro.
Como era prática da época, as eminências com função de cabeça-de-Terra articulavam-se com outros dispositivos de vigilância e defesa que, em conjunto, constituíam um verdadeiro sistema de segurança territorial. Algumas estruturas castrenses tinham a função de apoiar militarmente lugares considerados importantes, como um mosteiro, uma povoação ou uma habitação senhorial. Outras, de tipo mais ligeiro, serviam para controlar as vias de comunicação – em determinados locais estratégicos, como portelas, pontes, etc. – e, se necessário, para accionar dispositivos
de comunicação à distância, através de sinais com codificação visual 56. Neste último caso, em complementaridade ao castelo de Lafões deveria estar, na margem esquerda da ribeira de Ribamá, a atalaia (Fig.11) que controlava a passagem da Ponte Pedrinha – no morro, ainda hoje, denominado “Atalaia” – e uma outra que, presumivelmente, terá precedido a actual torre de Paços de Vilharigues. 

Fig. 11 – Vista geral dos montes Lafão (A) e de Nª Sª do Castelo (B).
Mais em baixo, ainda se vê parte do monte da Atalaia (C), que fica sobranceiro à ribeira de Ribamá.

Ambas tinham a função de garantir a segurança da via que ligava Viseu ao litoral e passava na base da Senhora do Castelo.
Na margem oposta, um dos lugares que dispunha de melhores condições para desempenhar o papel de ligação com o castelo de Vouzela e para, simultaneamente, alargar o sistema de vigilância a outra importante faixa de território – atravessada via inter-regional alternativa 57, nas faldas da serra de Arados – seria o monte da Senhora da Guia, em Baiões (Fig. 1) 58. Por outro lado, este antigo castro encontrava-se numa posição estratégica perfeita para a segurança do paço de Bordonhos, onde, em nossa opinião, se teria instalado o príncipe rebelde Bermudo Ordonhes. É possível que estivesse apoiado ainda por outras atalaias secundárias e de proximidade, como o castro dos Súmios ou do Mau Vizinho, na Ucha. Situado junto ao vale do rio Sul, este reduto prevenia a
terra de Lafões de qualquer surpresa que pudesse vir da estrada que ligava a Lamego, através de Castro Daire. Terá sido por esta via que, na primeira metade do percurso, Fernando Magno conseguiu contornar as quase intransponíveis defesas de Viseu, do sistema de castelos do Côa. E, recuando século e meio, poderia a mesma rota servir a eventuais intenções punitivas de Afonso III, relativamente ao “traidor” seu irmão,

55 MARQUES, Jorge Adolfo de Meneses – Vouzela: Património arqueológico. Sítios e rotas. Vouzela: Câmara Municipal, 2005, p. 70. Este autor afirma que a cronologia dos fragmentos de cerâmica recentemente recolhidos “se pode balizar entre os sécs. X-XIII”.

56  O uso de bandeiras e de fachos, para uso civil e militar, ainda era frequente no século XIX.

57  Referimo-nos à já citada via que, contornando o maciço da Gralheira, passava por Manhouce, no sentido da Terra de Santa Maria, onde entroncava com a via principal, em direcção a Portucale.

58 A posição estratégica da Senhora da Guia é bastante mais relevante do que a de mero controlo de um lugar de passagem. Outrora, despido do actual arvoredo, do mesmo posto de observação conseguia-se, no castro de Baiões, alcançar a vista de todas as serranias que cercam o planalto beirão: Caramulo, Arada, Montemuro, Leomil, Marofa e Estrela.

pelo que se explica bem a localização daquele posto de vigía. Outro castelo roqueiro de alguma importância para a segurança dos senhores de Lafões, nesta passagem do séc. IX para o X, deve ter sido o de Alcofra. Localizava-se no chamado “Castêlo”, em Cabo de Vila, na freguesia de Alcofra59, e serviu para vigiar uma outra via secundária, que ligava Vouzela a Águeda. Presumivelmente, foi aí implantado para cortar qualquer iniciativa hostil que pudesse vir de Coimbra, por este itinerário, alternativo aos de Penacova e Santa Comba60. Sobre o próprio planalto de Carvalhais-Bordonhos devia, do lado norte, existir também algum dispositivo subsidiário de vigilância. Não é de descartar a hipótese do castro da Cárcoda ter cumprido essa missão, já que foi reocupado em
época tardo-antiga e, segundo João Inês Vaz, também na alta Idade Média 61. Uma possibilidade alternativa – se não mesmo complementar – pode ter constituído o pequeno outeiro do lugar de Mota, na parte alta da freguesia de Carvalhais. Visitamos o local e um pouco acima da actual “Casa da Mota”, junto à travessa das Alagoas, existe uma elevação de terreno cuja aparência física se assemelha a um desses assentos castrenses da alta Idade Média. Na parte setentrional, menos afectada pelas construções que implantaram no cimo do pequeno morro, a sugestão é enorme, inclusivamente de um possível fosso, por onde corre água e dá justificação ao designativo “Alagoas”. Trata-se, assim, de um caso a merecer estudo, através de sondagens arqueológicas, tanto mais
que há poucos exemplos identificados em Portugal.
O tema do castro da Senhora da Guia causa-nos alguma perplexidade, pois nenhum dos estudos até hoje publicados apresenta evidências consistentes para identificar a sua reocupação na alta Idade Média e, muito menos, para saber qual o tipo de uso ou função que porventura teve nessa época. No entanto, acalentamos a suspeita de que tenha havido uma efectiva reutilização, como atalaia ou castelo. Isto deve-se, não apenas pelo que, sobre ele, nos diz o Santuário Mariano e pelas razões da natureza histórica e topográfica já acima expostas, mas também por algumas incertezas que as próprias escavações suscitaram nos arqueólogos que procederam ao estudo do castro.
Se é certo que Philine Kalb chegou a defender uma grande unidade entre o espólio exumado, atribuível à Idade do Bronze, ela própria reconheceu não ter conseguido distinguir a estratigrafia com clareza, nas suas escavações. Socorrendo-nos da síntese que sobre a matéria deu A. B. Lopes, na sua tese sobre o material cerâmico de Baiões, notaremos que, já em 1973, aquela investigadora dizia ter havido dificuldade “em documentar existência de estratigrafia definida; a camada de terra que recobre o solo rochoso é diminuta e a mistura nela de elementos de decomposição vegetal e uma certa erupção do terreno, devido ao arranque de árvores e a revolvimentos em busca de tesouros, tornam difícil a determinação da existência de estratos”. No entanto, em 1977, referia que as peças encontradas nas camadas inferiores aparentavam um estado de conservação homogéneo, o que contrastava com pequenas peças polidas ou peças que apresentavam fracturas antigas, encontradas em níveis superiores e na parte alta da povoação 62.

59  Identificado por MARQUES, Jorge Afonso de Meneses – Op. cit., 1999, p. 39. 60 Também na Serra do Caramulo podemos ver uma atalaia complementar no alto do Guardão.

61  Op. cit., p. 86.

62  LOPES, António Baptista – Op. cit., 1993, p. 34.

As escavações de Armando Coelho F. da Silva também não permitiram grande conclusão do ponto de vista estratigráfico. No dizer do seu colaborador mais próximo, A. B. Lopes, alguns problemas se levantaram em consequência disso: “Causa certa surpresa a presença de cerâmica impressa em Baiões, de mistura com cerâmica do Bronze Final, grafitada, pontilhada e incisa. Na sua tese de doutoramento, Armando Coelho F. da Silva inclui-a na fase II. Mas é de notar que em Baiões a estratigrafia não é confirmável e põe incómodos problemas a associação dos dois tipos de cerâmica na mesma estação, aparentemente em estratos indiferenciáveis”63. Na continuação do seu testemunho, o citado autor deixa-nos ainda a convicção de que foram efectivamente encontradas as
primeiras evidências, se bem que ainda ténues, de que o castro foi reocupado, pelo menos temporariamente e em escala reduzida. Antes de tudo, é de sublinhar a indicação de que ficou de fora do seu estudo “algum espólio cerâmico notoriamente denotando contaminações no conjunto da produção local”. Alguns destes fabricos apresentavam “pastas arenosas e friáveis”, características que, em nosso entender, não excluem poder tratar-se de fragmentos de cronologia posterior. Aliás, a existência de espólio mais tardio confirmou-se, inequivocamente, com o aparecimento de duas moedas do séc. IV d. C. e de cerâmicas romanas, “embora raríssimas”. Finalmente – e sobretudo – há que realçar que “da Idade Média detectou-se um pequeno fragmento cinzento, com pasta típica” 64.
Apesar de quase insignificante, este testemunho é mais do que suficiente para lançar a ideia de que o castro de Baiões sofreu uma reocupação medieval. Por outro lado, é de lembrar que só nos últimos anos se tem prestado a devida atenção às cerâmicas da alta Idade Média e que estas, muitas vezes, se confundem com cerâmicas proto-históricas.
A esse respeito – mas sem querermos com isto dizer que temos bases para contestar a sua classificação – é de referir que, no período suevo-visigodo, há peças com a mesma forma e técnica decorativa de alguns vasos publicados por A. B. Lopes 65. E embora sem questionar a existência de uma ocupação posterior à época romana, por falta de dados, Ivone Pedro também salienta que a vida do povoado não se pode ter limitado à Idade do Bronze, apesar de que “a extensão e intensidade destas ocupações é, no entanto, difícil de determinar”. E sublinha mais um dado interessante, citando Armando Coelho F. da Silva, sobre o aparecimento dos fragmentos de cerâmicas estampilhadas. Eles provêm de uma pequena sondagem realizada a SO da capela, “precisamente na zona oposta onde se recolheu o conhecido conjunto de cerâmicas e metais do Bronze Final” 66. Também J. C. Senna-Martinez abordou a questão das cerâmicas com decoração estampilhada, dizendo que teriam sido encontradas “apenas nos níveis superficiais da escavação de Monsenhor Celso Tavares da Silva”. Para aquele investigador, “poderão estar associadas

63  Idem, p. 172.

64  Idem, p. 161.

65  Nomeadamente aquele que designa por IV-A-1 (fig. 11). Embora sem esquecer que o material de Baiões tem sido equiparado ao de outras estações proto-históricas da Beira interior, fundamentamos esta observação em peças que apareceram associadas à chamada basílica do Largo D. Duarte, em Viseu, para quais chamou a atenção João I. Vaz e as data por volta do séc. VI-VII d. C. Seria importante comparar as respectivas pastas e técnicas de acabamento, pois a mera observação formal nada garante que se esteja a falar da mesma coisa.

66  PEDRO, Ivone – Op. cit., 2000, p.135.

à destruição do sítio”, embora remeta o abandono do castro para o período de crise e redefinição de equilíbrios no Ocidente Mediterrânico, durante o séc. VI a. C.67. Será pois de todo o interesse uma nova observação dos materiais da fase II de Baiões (Fig. 12) e, principalmente, daqueles que não foram seleccionados para o estudo de A. B. Lopes, em parte por serem considerados de fabrico exógeno 68.

Fig. 12 – Vaso de cerâmica estampilhada, classíficado da fase II de Baiões.
Desenho de A. Baptista Lopes.

A concluir, não queremos deixar de lembrar a hipótese deixada por A. de Almeida Fernandes, sobre a origem do topónimo Baiões, já que nada leva a crer que possa tratar-se de um nome de família, relacionado com a estirpe que se desenvolveu a norte do Douro e que nada tem a ver com a região de Lafões. Segundo aquele ilustre medievalista, depois de lembrar que o topónimo se localiza numa zona de forte influência moçarábica, pode-se “ver em Vaiões uma forma anterior Vaiones, plural do n. pessoal ár. Walid (Ualid), isto é Walidones, pois que plurais românicos de antropónimos arábicos não faltam” 69. É bom lembrar que se chamava precisamente al-Walid o califa omíada (705-715), em nome do qual se deu a invasão árabe da Península e se realizaram os primeiros pactos com a população indígena. No dizer de uma crónica árabe, em Gilliqiya, da qual esta região fazia parte, “as suas gentes foram a Muça, pedindo-lhe um acordo”. E segundo P. Chalmeta, já acima citado, estava-se no ano de 714. Ora, pode dar-se o caso de que as tais “gentes do pacto” tenham deixado na toponímia local, não apenas a memória do lugar onde se deu um desses acordos (Sulh), mas também da fortaleza donde elas passaram a ser controladas pelos súbditos de al-Walid (Walidones).
Toda esta problemática é do máximo interesse, tanto mais que se trata da abordagem de uma época ainda mal conhecida e da contextualização da presença em território português, nos inícios do século X, de um Príncipe asturiano (Bermudo Ordonhes) e de um Rei (Ramiro) que, depois de se assumir enquanto tal, ainda em Viseu, irá tornar-se um dos mais prestigiados monarcas leoneses, vencedor do califa Abd al-Rahman III,
na memorável batalha de Simancas.

67  SENNA-MARTINEZ, João Carlos – Entre Atlântico e Mediterrâneo: Algumas reflexões sobre o grupo Baiões/Santa Luzia e o desenvolvimento do Bronze Final peninsular, in A Idade do Bronze em Portugal: discursos do poder. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 1995, p.122.

68  É indispensável que o Centro Regional das Beiras, da Universidade Católica Portuguesa – actual guardiã do espólio da castro de Baiões – reúna condições para que tais materiais voltem a estar disponíveis, para
efeito de pesquisas complementares, como esta, que tem o objectivo de avaliar a possibilidade da Senhora da Guia ter tido uma ocupação alto-medieval, por restrita que fosse a estrutura militar da época.

69  FERNANDES, A. de Almeida – A toponímia da Beira Alta no “Dicionário Onomástico etimológico”

de José Pedro Machado. Beira Alta. 48:3-4. Viseu (1989) 385-386.

Fonte:
Revista da Faculdade de Letras
CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÓNIO
Porto 2013
Volume XII, pp. 203-230

Manuel Luís REAL
CITCEM

REAL, Manuel Luís - O Castro de Baiões terá servido de atalaia ou castelo, na Alta idade Média? (...)
Revista da Faculdade de Letras CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÓNIO, Porto 2013 - Vol. XII, pp. 203-230


© Carlos Coelho

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